Meu amigo querido que tanto me convocas, nos momentos eu já não posso falar-te, sem acessos materiais para o fazer, a não ser em pensamento... enquanto zelavas eu estava já recolhida e não dormia ainda, só não consegui falar-te por este meio que elegeste para nós, ou que nos foi revelado ao terceiro dia e não mais mudou, sei lá. Estou distante geograficamente isolada. Sempre foi tão precário este modo de falar. E "sempre" tem a duração dos últimos anos da minha vida, desde que comecei a deixar de ser menina e moça e fui esta espécie de mulher avançada e recolhida que não sei descrever facilmente. Por isso não respondi ao que me pediste. Respondo sempre. Evocas também os tempos. Os tempos antigos em que havia descoberta e revelação. Sim, os tempos. Então não me ouvias claramente, ou se ouvias, havia pudor em assumir tudo. Até o interesse. Não havia coordenadas, nem lugares com nome, ou pessoas. Eras uma vaga impressão de alegria e de atenção em mim. Tudo podia ser ou não ser. Vivias desse equívoco e eu aprendi a ler para além dele. Sempre. E depois houve a sucessão de confusões. E pronto. Não quero falar nisso. Vivi de confusões e de equívocos, meus. Sofri e fiz sofrer. Não eras tu. Agora és. Convocas o passado primordial. Talvez recordes até coisas de que não me recordo já. A contra-senha. E pedes-me para entrar mais em mim. Mas tu já tens acesso a mais de mim do que qualquer outra pessoa no mundo. Isolei-me de todos. Arrastei pelo deserto e pelos canteiros escondidos o lugar da minha escrita, altares de ti. Estou diferente. São as rugas, sim. São muitas. Esteve sempre aberto um lugar mais próximo. Ainda está. Mas continuo sem te perceber. Esmoreces envolto em tanta dúvida e tanta hesitação, avanços e retrocessos. Anos e anos que nos partiram. E eu não consegui ficar igual àquela que conheceste. Mas sou assim como sou. Talvez ainda possa gostar de mim. Fica tranquilo. Eu estou aqui. Não parti.E hoje está um dia sem sol. Escuridão nas dunas. Sábado irrelevante. Estou cansada e tenho saudades de casa.