Viajo muito nos meus dias calmos e calados. Vejo gomos de luz escondidos nas nuvens, caleidoscópios nas gotas da chuva, universos pararelos nas vidraças embaciadas. Vejo gaivotas na parada, estatuetas bizarras frente aos canhões. Imóveis, esperam que o dia se abra em luz ou o mar se feche em paz. E eu vejo o mundo das coisas e imagino o ser nada, o sentir de quem nada sente, ou é. O que me cerca é afinal o que me faz osmose das coisas. Nada existe sem que o meu sentir creste a superfícis das coisas. Que seria destas gaivotas da parada, frente aos canhões no quartel, bizarras estátuas de água que vêm aqui lembrar a paz que se vive no aparato da guerra, que seria delas se as não pintasse eu aqui no meu olhar como memória viva? Os objectos são a nossa ligação aos outros. Hoje tenho à minha frente a razão das palavras no foco da retina. Escrever é coar o mundo, polir os objectos, dar-lhes a vida que não têm, emprestar-lhes a nossa sombra, ou a nossa luz. Não há duas pessoas a dar a mesma vida ou vida alguma às coisas. É a escrita que nos coloca na postura da palavra e do mundo. E eu sou permeável à precisão dos objectos. Vejo-os, ou não. Mas se tiver tempo de os ver, aproprio-me da sua face imóvel. E o meu traço risca a placidez das coisas. Posso pela palavra objectar o mundo e assim a palavra é ela também objecto. Fosse eu também uma destas gaivotas emudecidas, à espera, apenas à espera, que o mar se cosa e o sol sorria...
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