20.3.10

chuva contínua

o sono que me percorre os dedos
astenia da chuva, talvez segredo
a escorrer pelos ombros
meu amor, mil vezes dito,
agora escombro, ruína ardente
de um fogo imposto pelo silêncio

amigo, árvore sem rosto,
tu eras o outro lado do meu mundo,
o esconderijo do tempo

quando fugia sabia que te havia
sempre como mistério
nos meandros do pensamento

agora penso só
já não tenho olhos para te emprestar
nem tu tens palavras para eu ver

é como se, virados do avesso
ao Sol de um Outono qualquer,
ficássemos fósseis poderosos
autodiegéticos das narrativas sulcadas na pele
responsáveis por uma omnisciência só

nada que hoje altere a rima da chuva
por mais que eu evoque o sol
ou te afague a face
com facas de papel

eras o vagabundo e eu via-te
os olhos de rei
nos andrajos do infinito

recolhemos juntos o mundo que tínhamos
escondemos tudo numa casa viva
tapámos com cal e calcinámos o resto

não fales, já não me existes
e se me leres pronomes teus
nas palavras tristes
pensa que a musa mudou
a musa não existe
e apenas o meu lamento
ainda narra aventuras de heróis
outrora felizes

se puderes dizer o meu nome
quando o teu mundo encolher
num espasmo de sangue e suor
di-lo, uma sílaba só,
para que eu saiba que não sonhei
quando fomos a mesma água
do mesmo lençol

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