28.4.10

reflexões do outro lado de lá



o vestido no chão, uma rodilha de seda velha e inútil, a penumbra a chegar à íris, a tapar a objectiva, num convite ao apagamento, fosse possível querer e ter o sono logo ali, na crista do momento, mas ainda assim não compreende onde em pensamento a noite cai, talvez dormente de palavras queira passar sem som a fronteira que a separa do vazio. e o vislumbre de tudo que o dia sublinhou, a brisa estival, o cheiro de açucenas vindo dos jardins da Gulbenkian, ou seria da Embaixada de Espanha, ou do fundo covão da memória, os dentes negros com que sorria a todas as lembranças, extasiada de tudo que viveu e guardou, ciosamente armada em pedra, a lembrança que carregava pesada no andar. vagabunda, sim, mas rica de emoções. podia vendê-las a troco de moedas. quer uma emoção nova, uma sensação que nunca teve, gostava de conhecer impressões novas, venha aqui menina, na palma da sua mão deponho uma forma sem expressão, dar-lhe-á a cor dos seus sentidos se souber delapidar as emoções, torná-las puras porque lhe atravessam o ser. rica de emoções. um dia... estava ela... não importa onde estava. houve um dia, ah, esse dia, era um assim igual, Maio certamente, e as manhãs então abriam antes das flores, quando o sangue a despertava com o retinir da vida. zumbidos, sonolência e a frescura da roupa limpa. tantas emoções. a saia a ondear como as corolas das papoilas e o a ilusão do amor presa aos gestos. acordava sabendo que ia ser feliz, só porque gostava da roupa solta no corpo e se embriagava de odores. vivia do pólen, como quem bebe do ar a vida e o amor era a Natureza no seu esplendor,  mas não sabia de amores, pressentia-os, sublimava-os no alerta dos sentidos. era sempre dia de ser feliz, cada manhã que vinha e trazia em si o mistério das coisas por acontecer, tantos zumbidos e aquela sonolência que lhe apaziguava o sangue e lho atribulava, as emoções do gineceu pleno, tantas sentira que agora já não lhe bastava sentir, mais lhe aprazia sentir como sentia. quer viver emoções, menina? não custa nada, basta fechar os olhos, eu conto-lhe, não paga nada, eu quero dar o que me resta, não posso levar tudo comigo, deixarei as manhãs a quem as quiser, as manhãs mais belas e perfumadas que já cresceram nos dias passados e presentes e os de um futuro que ainda vier. um sol já alto e a roupa branca e o corpo lavado e fresco e a rua limpa e esvoaçante e o olhar com traços raros de emoção, escadas cantantes na soalheira dos gatos, não, as manhãs são uma oportunidade que a vida dá todos os dias. nasce-se ou morre-se de vez em cada manhã. ela sabia onde encontrar a fonte, o jovem fio de água, por dentro, os dentes escuros, a pele magra, a carne metida para dentro, como se a morte a fosse encerrando dentro de si mesma, mas o olhar a cruzar os céus e tudo podia alvorecer de repente, ou enternecer-se  com a simples brisa do sol. uma manhã tinha aquecido o corpo nas manhãs precedentes e toda a sua vida lhe voltara de novo. não era preciso um grande amor na vida para lhe encher assim os olhos de estrelas e de mal-me-queres. bastavam as manhãs em que os zumbidos dos insectos e o cheiro do feno fresco lhe prometeram aquela riqueza, a profunda apreensão dos sentidos, que mais podia ter de seu, e que riqueza outra então teria se não fosse o acto de embriagar-se no limbo  das manhãs. e uma manhã houve mais desperta do que as outras, foi quando se apaixonou e tudo que existia era mais belo porque fazia parte do amor. tantas emoções. levantou-se naquele dia mais cedo e encontrou o amor, com os olhos brilhantes que o amor ostenta. depois o amor foi-se tornando lentamente em manhã e agora bastava-lhe saber que as emoções nunca partem, depois de o amor passar a ser uma coisa que teve tempo, lugar e pessoa, mas flexiona a vida de modo presente.



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