há lugares na cidade,
lugares numa calçada ao sol,
como todas as calçadas das cidades
ao sol
são lugares que descem para o rio
como todas as cidades altas que
descem para algum lugar
um lugar azul coberto de rugas
um lugar de pássaros cativos
felizes no seu trinar descuidado
um lugar de sardinheiras e flores miúdas
arcos e voltas na abóboda moura
lugares da cidade onde a vida pouco mora
mas a tarde passa reinante,
afastando a humidade da casa lívida
há uma velhota em cada soalheira
a viver o timbre surdo do tempo
sem lhe ver uso, nem a lividez
do rosto lhe acudir à boca
é feliz, porque não sabe,
nem lhe sobrevém qualquer canseira
uma velha que sopra minutos e enxota moscas
com o mesmo ar resoluto com que contempla
um horizonte tão curto.
em qualquer cidade há portados e
velhotas sentadas sob as figuiras
também há homens que são bancos
ficaram assim de tanto
o tempo lhes ter parado nos flancos
nos ângulos dos dedos
marcados com um carimbo dos serviços
da segurança social
os homens do banco
não produzem senão pensamentos
ficam pendurados na tarde, no verso
das folhas dos plátanos
os pensamentos dos velhos escorrem
como o seu suor ácido
não produzem lucros, nem prodígios
e não sabem. Apenas lembram
o que souberam, como quem recolhe
as sobras e as guarda para o dia seguinte,
com medo que de repente
tudo falte. Até os pensamentos.
sei desses lugares,
porque os trago no sangue
sei-me codificada, sei-me como uma cidade
a descer para o rio, como os pescadores
que o mar não tragou e se perderam
pela cidade à míngua de horizonte
não me perguntem por eles
a minha ciência tem socalcos
e dúvidas. não sei sequer
de que miradouro (se)olham
reduzidos à condição de poetas silenciosos
não sei onde guarda a cidade, tão secretamente,
a gente que já foi, a vida que correu,
verteu, devagar, pingo a pingo
o sangue que fervilhou.
Só sei que é um lugar e que desce
em escadas alegres que as crianças
gostam de descer a duas e duas,
ou ao pé-coxinho. as crianças
fazem a cidade crescer
para o rio.
e eu não sei que lugar é este
que nos contém
a todos, em cidades, em muros
e em bancos, ou praças,
e nos toca na face com o seu dedo hirto
sempre a descer para um rio profundo e
a comprazer-nos com raios de sol,
fios descuidados sobre o olhar vencido.
.
17.5.10
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Recentemente...
Não consigo viver mais dias. Já são tantos e tão inúteis. Preparo lentamente a minha fuga, a maior de sempre. Será rápida e ninguém dará por...
Mensagens populares neste blogue
-
Ele costuma escrever-lhe cartas riscadas como vinil, cartas sem nome, curtas e voláteis, mas ela lia claramente o som da voz, a saudade da...
-
Entre montanhas planeio voos e plano sobretudo o lugar da ilha A vida existe mesmo que a não queira. Mesmo que a chame e a submeta aos pés d...
-
A idade é um percalço programado. Nas pedras é musgo e pó. No corpo é uma delicadeza de cetim amarrotado. Nesse pano acetinado a idade não s...
Sem comentários:
Enviar um comentário
Deixa aqui um lírio