9.11.20

Cartas do destino

meu amor, não sou eu que te escrevo, é uma voz que não se cala. preciso de dizer de novo. recordo o tempo todo. o tempo da cegueira. estávamos em ascensão contrária, tu subias para a vida, eu descia a calçada, que era já íngreme para ambos. encontros, desencontros, medo, ciúme, mistificação, desorientação minha, na urgência de te conhecer, tudo nos separou. eu ajudei-te a subir, tu ajudaste-me a crescer. encontrámo-nos sem saber. eu não sabia. perdemo-nos, sem saber. só tu sabias.

o tempo passou passou, muito tempo passou, tanto que eu pensei que o teu eu desconhecido tinha sido um sonho bom e que não existias. talvez tivesses até morrido, um ser existencial com toda a cogniscência do mundo, uma maturidade profunda, no fim de uma vida prodigiosa.

mas um dia, um dia, ouvi uma frase de um poema teu, junto ao teu nome. só eu conhecia o verso. só tu o tinhas dito. eras tu. (...) renasci. li tudo teu, busquei tudo, adorei o teu retrato e só de muito o olhar o reconheci. eras afinal tu aquela pedra da Bíblia, a pedra que os construtores recusaram. a pedra que eu recusei acabou por ser a pedra mestra da minha vida. agora é tarde. estamos longe na escala da vida. sempre fomos impossíveis e tu sempre soubeste isso. a adoração por uma pessoa coloca-a na dimensão do impossível. preferia adorar-te menos e mais perto e que me pusesses no mais baixo pedestal do teu coração. 

escrever é ir aplanando as curvas que desenhámos. faço-o para apagar a minha cegueira, os meus erros, mas os olhos quem mos tapou foste tu. o resto foram lírios perdidos no vento, transformados em cardos do deserto.

lamento tudo, a minha intensidade, a pressa de viver, de te ver, de te saber, puseram pedras duras no meu caminho. feri-te quando vieste a mim. não eras tu. não podias ser. é assim, sabes, vejo isso agora - a pedra que os construtores recusaram veio a ser a pedra mestra. afinal, tu.


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