27.12.20

O frio que se sente

Quantas noites polares queimaram de frio os ossos dos homens até chegarmos a esta? Será banal escrever sobre o frio, depois de este ter secado os lábios dos homens nas estepes, nas cavernas ventosas, nas cordilheiras brancas, que sei eu do frio?

Escrevo agora muito sobre o tempo e com o tempo armado para o que vivo, no momento em que o que vivo ainda vive. Por isso, abraço o tempo e descrevo-o com a mesma diligência e precisão dos monges das iluminuras.

E o tempo que me bate no coração é este de agora, 21:30 de domingo, um universo salpicado de rajadas velozes que gemem nas janelas e desmembram o conserto das persianas.

Prosaicamente, atribui-se pouca importância ao vento, mas em poesia o vento que assim assobia traz-nos os versos românticos de Antero, os contos de Eça na encruzilhada do enforcado, as noites brancas de Tchekov, a inquietação dos irmãos de Paranhos na ruína do solar, o alçar dos lobos com frio e fome nos romances de Aquilino, as longas paisagens brancas de Jack London, a ascese de Eurico, o Presbítero, o tremor de Viriato e seus rebanhos. O frio cobre toda a literatura e consome-nos com a redenção da chama. Não pode haver frio sem haver fogo. Como não pode haver paixão sem indiferença.

A Natureza traz-nos os contrários, os maiores rigores, para podermos apreciar os seus opostos. Aprecio hoje a manta elétrica, a botija, as janelas duplas, a salamandra a guinchar, aprecio o conforto, porque já conheci o frio. As geadas matinais, o descampado gélido na apanha da azeitona, as noites de estudo em quartos gelados, a casa paterna com telhas e canas e muitas fendas nos sobrados.

Igualmente, aprecio a amizade, talvez o amor, porque conheço o oposto. O lado frio de nos sentirmos sós mesmo com alguém. O lado gélido das noites em que nos sabemos excedente, gente que a sorte abandonou. Gente sem gente.

Afinal o frio é também um lugar central no corpo, sem um pingo de fogo que nos alimente.



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