28.12.20
Para falar de amor
Para falar de amor uso baton e apanho o cabelo com uma travessa dourada daquelas que esculpem delicadamente a madeixa para cima e depois a deixam pender em forma de cortinado do rosto. Falo de esguelha para que não se veja bem o que penso. Sou como o pregador que não encara o público por pudor. Para falar de amor tenho de vir mais cedo, menos pálida do dia, com uma magnólia sorridente no lugar da amargura. Digo quase sempre bem do amor, como digo de uma floresta cerrada e fresca. Mas hoje, para falar do amor não trago nada. Venho vazia e vaga, porque o amor esgotou-me a fala, o baton, o cabelo e a voz do verso. Pouso em tudo que já disse como um colibri cansado demais para debitar mais néctar. E no fim, porque descobri que o amor confunde até as marés, encerro o meu discurso e passo a estudar talvez o serpentear do vento entre as frestas do passado, ou a esculpir janelas vulneravelmente abertas para nenhum mar.
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