Antes de ti era cega, com aquela cegueira de quem conhece só o tato superficial das coisas. Foi como ouvir uma cítara no deserto e seguir o som, para me encontrar comigo, essa sombra do lado mais abismado do que sou. Ao abrir essa Pandora, derramei todo o sentimento acumulado, espalhei toda a intensidade em ti. Foste um marco que se perdeu na estrada, a qual, no entanto, me abriste. Não te vi logo, por isso sonhei demais o que és. Antes de ti não havia poesia que me salvasse. Tu foste o lado mais alto do lirismo, entre letras, romanceiros, contos, olhares enamorados. Esperei de ti a esquina, o café, o luar azul, o rio que passa sem se ver.
Hoje já não sinto nada. Nem a poesia me lavra por dentro o que fui ou podia ter sido. Contemporizámos um presente que seria sempre futuro e agora é um enorme fundo documental, de mim para ti, tudo datado, de ti para mim, tudo passado. Não sei como reencontrar a emoção de cada dia, o arrepio da inclinação, da projeção noutro ser, por exemplo, em ti. Já não sentimos nada. Mas temos uma história entrelaçada, uma encruzilhada de papel que já nos despenhou o sangue nas faces. E não houve nunca amor igual. Estava cega, antes de ti, repito. Agora devo estar miope porque não vejo o rasto de mais nenhuma emoção. Qualquer palavra que nos diga é cada vez mais estranha e fútil. Não sei que diga.
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