devo ter merecido o retrato, mas a verdade é que só de manhã pensei que podia estar em algum canto dele. olhei em volta para o espaço que cruzo. não sei onde cabe o retrato, mas devo ser eu. há espelhos que nos mostram o que não vemos quando nem os nossos olhos nos reconhecem na superfície irreal. o vidro serve para nos fazer regressar à nossa imagem, mas pelo caminho não nos achamos porque a cegueira de nós é a cegueira maior que jamais atingiu os homens. por isso os espelhos de olhos são os mais fiáveis. quantos olhos houver, quantos espelhos nos devolvem a imagem que retêm. ao fim e ao cabo eu não existo. só há miríades de imagens minhas espelhadas em quantos olhos me observem. dentro de mim mora a imagem original que ainda nenhuns olhos viram, nem os meus. o criador tinha uma intenção qualquer ao criar-me entre milhares de seres que poderiam sair do abraço dos meus pais. ainda ando para a descobrir, bem como uma imagem de mim que se aproxime do padrão original. entretanto leio com os olhos os olhos de outros que me lêem com os seus. e pasmo sempre que alguém me assinala um pormenor em que nunca tinha pensado. a minha relação com o tempo é de contemporização de forma a vencê-lo e chegar, antes que ele me vença e chegue primeiro. de resto sou flexível como um junco. tanto o sou que um dia seco e deixo de vergar para tombar seca no solo. até lá o meu tempo é dividido e segmentado e reajustado e alongado, e quando sinto que controlo alguma coisa, a mim própria, por exemplo, dou-me por feliz, mas são demasiadas as contingências que me prendem. delas, a menor é ainda o tempo.
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