30.7.08

carta no limite do teu rosto


sim, há diários descontínuos entre o deserto e o jardim. cada página de areia ou de adubo transcorre um mesmo fluido de ideias, conforme fustiga ou fertiliza o amor. compreendo-te. são coisas translúcidas as tuas cartas, vê-se através delas o mar e a ternura, quase o tremor do lábio na curva da caligrafia. porque eu e tu penhoramos nas cartas a intenção do gesto e em cada rosto dos nossos dias vasculham-nos cães de dúvidas a rosnar pela libertação, que não vem. nem deve vir, diz o parágrafo seguinte, embora possa acrescentar na volta do correio que a liberdade é afinal estar presa ao teu seio, ou enxertada no teu peito. e depois há os dias em que o ouvido não capta sequer o rumor das ondas da tua boca. ou as bocas se perdem na polifonia e não restam palavras creditadas, a não ser por circunstanciais afonias. derivas do coração, eu diria seixos rodados no cascalho fino das paixões. todas as árvores a crescerem para dentro, sem clorofila aberta ao sol, à soalheira o brilho da espera sem solidão que nos demova. e a casa de outrora suspensa de uma palavra tua que nunca veio, xecutada a penhora noite a noite, porque a penumbra se tornou escuridão e eu deixei de conhecer o limite do teu rosto. questionei-te na palma da mão, uma linha densa e funda e tu sulcado por mim acolhias a ti o reguarado da palavra, a inexactidão do nome. morreram-te as palavras que nunca conseguiram nascer para mim. mil e uma casas reconstruí no fluxo do amor, fui outras tantas o rio que esqueceu, o rio que levou a desilusão, o isolamento da tua porta em mim. e vivi de te adivinhar onde outras te recebiam no colo. por vezes fazia do rio a minha cama, ultimamente vivia no rio, sempre a descer sem quase já te avistar. reagi, na margem escarpada desta cegueira presa nos teus passos. chamei-te para te drenar das veias a indiferença, arranquei-me à minha própria ataraxia e fui em busca do lugar do amor. encontro-te sempre na distância, aproximo-me de ti na distância, amo-te e beijo-te em cima da distância. tanto tempo a idolatrar-te, a chegar-te, a isolar-te, a trazer-te a mim. não fui eu que fiquei a combinar com o destino a perda da tua voz, o fio ténue da tua vontade. teria preferido ardentemente sempre o poço até ao fundo, todas as mãos e promessas esgotadas até o sangue nos secar, até a boca aprender todas as formas íntimas do amor, a voz nos enrouquecer de fogo, o corpo fundear no golpe da palavra e esta nos trazer o alvoroço e o recobro. teria preferido assim: que me assinalasses as voltas do teu corpo, o volume da tua realidade, as interjeições do teu dia e depois me povoasses, sempre em profuso e amplo peso da palavra. como escribas perdidos no tempo, sem distância intermédia, nem coordenadas, apenas boca a boca, a palavra entreolhada, cartas como esta ditadas às mãos, ao corpo às linhas de um comboio que nos transportava sem presa. muitas vezes mergulhei na confusão, nem sei ainda se me compreendo no teu mistério, mas quero estar assim a falar contigo, como quando a noite nos golpeia o sono na mesma cama, no mesmo comesinho tráfego de emoções, ou devaneios, penumbra de exílios entre a pressão dos dedos. não te chamei, foste tu que vieste chamar a vontade de chamar-te, porque partias deixando-me partir sem mais vontade. mas ainda bem que vieste. ponho água ao lume para o chá que não tomámos esta tarde, posso abrir as águas do leito para secar-te e receber de ti o corpo frio, no meu que quente te toma em silêncio como se exorcisasse de nós a noiva morte.
.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Deixa aqui um lírio

Recentemente...

Não consigo viver mais dias. Já são tantos e tão inúteis. Preparo lentamente a minha fuga, a maior de sempre. Será rápida e ninguém dará por...

Mensagens populares neste blogue