8.10.08

espaço


I

A Lua hoje reina por entre os prédios, enquadrada por um passe-partout de betão, aquartelamento da morte onde nada tem fuga. Silencioso e metódico um polícia jovem distribui multas em mensagens brancas que de manhã azedarão o dia dos locatários da zona, depois do último gole de café. Não há espaço no bairro para os carros de todos os habitantes. Empilham-se andares, mas não se empilham carros. E nenhum carro vai para abate no meu bairro. Todos circulam e ocupam lugar, mesmo os que quase não circulam. E os que já fizeram a última viagem e se quedaram ali, um último estertor, um último ronco, ocupam o seu lugar vitalício. Não há espaço no meu bairro, nem para o riso. E o riso nem sequer ocupa espaço. Não cabemos todos em tão pouco bairro. Até a Lua, na sua exacta metade de perfeição, vagueia entre prédios encalhada nas antenas de televisão.



II

Estou cansada e atenta, a beber haustas de silêncio pela boca, como um peixe privado de água. Esta calma refaz-me por dentro, reconstrói-me na pele e nos sentidos. Tudo pára e eu não posso perder o espectáculo do mundo em suspenso. Se eu pudesse mudava-me para o silêncio e ficava lá o dia inteiro. Ou buscava os teus olhos para me marear e aceitava o mar como silêncio. A tua voz como silêncio. O teu riso como mar. Então saberia da pedra a idade mais distante, do rio o início e da foz o limite. Poderia com este silêncio sequestrar o tempo. E voltaria depressa ao sieo da minha mãe, ou ao teu peito. Com o silêncio também podia medir o teu corpo ou senti-lo pulsar dentro do meu e todos os movimentos do amor seriam silenciados, todos os beijos seriam por dentro, ressonantes, mas silenciosos como sombras de um passado atento, ressuscitado para se tornar presente, na evocação simples do silêncio. Também podia chover enquanto isso. A chuva é a presença audível do silêncio. E tu a sua expressão mais pura e duradoura. Quando me escutas atentamente e eu te ouço e tudo não é senão poeira do tempo, isso, meu amor é silêncio.


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