29.1.09

Conversas à Chuva I





Ficámos então pela haste da conversa, pouco mais foi acrescentado, desde que nada me disseste entre os olhos. Conversas-me à chuva, com uma haste de cigarro meio-morto entre os dedos, com uma displiciência vadia, o desprendimento dos seres comprometidos com o abismo do imediato. Ficámos então no lado sul do tempo, antes de se nos apagar tudo, de uma forma surpreeendente.

Já sei que não há mais nada a dizer que nos convença da única verdade que buscamos, a do renascimento mútuo, numa concha de cetim, aromatizada de anjos. Vê tu bem que eu ainda me ponho a imaginar as fitinhas brancas e o sorriso nascido louro que então nos púnhamos. Não me digas que é crime querer tapar a humidade das paredes, o cheiro a suor das madeiras, os buracos na voz, o estrume do tempo, pintar tudo com umas pinceladas de realidade que valha a pena erguer nestes dias de mor chuva e mor miséria, cuja não é mais do que apenas existirmos sem a glória prometida nas alturas, ao nascer.

Sou patética, na minha escrita de casulo, entremeada de giroflés em rimas e rimancetes. Mas olha, podia parar tudo, deixar a roda enferrujar, nem mais uma viagem, nem mais uma partida, deixar-me balançar pelo vento sincero e crescer, como uma rosa de papel, algodão doce, ou balão de ar, num crepúsculo de sublime banalidade. Quedava-me por aí, sem mais som que me assinalasse a existência, sem mais pestanejo que acusasse a vida, sem mais cetim aromatizado de anjos e gladíolos. E era tão fácil crescer para dentro. Só que eu presisto nesta cavalgada do coração ao matraquear as teclas, ao pendurar as palavras no risco do uso, ao cauterizar sorrisos que não ouço, nem conheço, ao aglutinar perigosamente a noite e o mundo e o silêncio e tu, num só pino, prelúdio de um salto imortal sem rede. Que se lixe a imortalidade e a escrita e os teus ouvidos que se esmagam na harmonia fácil dos meus ditos. Não leias o que nem sequer aos meus olhos publico, apenas descarrego como sismo interior que me abana o ocasional corpo.

Ficámos então a meio do copo, sem bebermos mais para não cairmos ébrios no cimento do poço. Pouco mais viremos a dizer que valha a pena arregalar o olho. O sarcasmo que me falha, nos momentos em que apenas te amo, já me valeu a monástica e monacal palavra de que não gostas. Tão longe da corda do cesto de cetim com hortências, anjos e gladíolos aos molhos, a corda, corta a corda das palavras, o estendal, acorda! Sim e também que interessa a felicidade das belas histórias, ou a precaridade das menos boas, ou a fragilidade das que se tecem pelas mãos e se ganham em cada dia como lotarias sentimentais. Não há histórias de amor, há apenas uma história de amor que nunca aconteceu, nem se repetiu a não ser para riscar o caminho que todos rasgam montanha acima.

Por isso, esquece que te falo de amor, quando te falo de amor, já não há amor nas palavras que atiramos um ao outro como rosas de pedra; nós somos o amor; period. Nós somos a graça, a perdição, a fábula, a ruga ao canto do olho, a psoríase, a uveíte que nos inflama por dentro a íris e nos mostra o mundo como possivelmente o mundo nunca será.;os passos do tempo nas minhas sílabas, que velozes lutam contra a coda e o ataque, consoante eclodem no coração ou na cabeça.

E tu ficas aí, sentado num lugar qualquer, imóvel e mudo, como uma gota de chuva, antes de cair, pesarosamente no parapeito da janela. Eu diria antes, vida! e com isto vigorava em ti a profecia, aquela palavra última que os deuses disseram antes de o seu reino recuar para as profundezas dos livros antigos. Vida e amor, lira, lírica e lirismo, arca de dores e de carinhos, pele armada de ternura e desarmada de beijos e costuras. Purilidades minhas...

Atrevo-me a escarnecer de tanta palavra alteada pelo vento, como tojo no deserto, tanta espuma nossa na orla dos marasmos que os outros ocupam, tanta falésia com o teu rosto e o meu no fundo... atrevo-me a rir de nós, ouves, atrevo-me a rir de mim e desta meada que tanto coso como descoso. Jamais chegarei perto de atingir a materialidade, o estado sólido da palavra, a escrita profunda, sem formol, nem quiasmos e miasmos de ruborizada fala...

Estou entre a chuva e o vento e não sou habitável. Poderás crescer-me mais perto, ou ir para o abrigo das mulheres-catedral, fiandeiras talvez mais hábeis, mas não venhas ler a imponderabilidade da minha escrita sem abas, sem pináculos, sem cornijas seguras e audazes. Nua nas minhas margaridas de água.
..

Se vieres, vem conversar comigo à chuva, mas não tragas nada, sobretudo deixa lá fora o teu passo de sarcasmo, vem descalço e molhado, de preferência pálido e louro, um cristo de porcelana, ávido de musas que no teu corpo limpem sudários de pasmo. E sobretudo vem, como quem vai ao rio por Narciso ou por Natércia, por Lianor ou Violante, mas vem poeta e bardo, como usavas dantes!


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