7.2.09

à beira da realidade

hoje ficava a falar contigo pela noite a dentro. mas para isso, teria de se abeirar de mim a realidade. já não vivo sem ela, essa virtude visceral de ser presença, esse arrepio da possibilidade de sentir. ficar a falar contigo, isso é o que sei, já sem sons na rua, nem na voz, apenas um cicio enamorado, pouco intelegível na sílaba, só na intenção, e falar seria como abrir a porta às frases encerradas, ao sopro, à funda respiração do corpo, ao próprio tempo. que saísse, que saísse tudo numa noite só, festival de palavras ao ouvido, tanta conversa e tanto riso, que a voz nos doía à hora d'alba e o sono seria servido num silêncio de cetim, próprio do férvido e tranquilo paraíso. seria assim, se o mundo nos estreitasse agora e aqui, mas terias de ser tu, na tua aparência atenta, no teu olhar que me rasga, na tua palavra aguda que me penetra e me agita. falávamos como duas árvores altas e fatídicas, sem descanso, o ouvido no ventre, a mão na aurícula, o alvoroço na pele, a serena fadiga. e não nos calávamos, nem quando o sono nos atraiçoasse e em asas de anjo nos levasse, com uma palavra ainda na boca, "meu amor", e talvez fosse esta, ou outra, rouca e sibilina, aromática, sem dúvida louca... aqui à beira da realidade não há frio, nem sobressaltos nos ossos. é o pensamento que nos traz o frio e há momentos frios em que pensar, imaginar, voar, cair a pique no campo do sonho é como um passeio na neve, sem botas nem casacos, sem renas, sem cães, sem uma fogueira para aquecer as mãos. um dia deixamos de falar e vamos perdendo o dom até de ler para além do invólucro. é o primeiro sintoma. a intervenção tem de ser rápida, uma incisão na voz ou o olhar, ou por dentro, nada escapará...



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