a natureza do tempo...

agarro-me aos sinais, como o náufrago à possível bóia, que nem sequer se insurge no horizonte visual. oscilo a atenção em coisas rituais, tarefas repetidas, opções que dou aos dedos e à mente, engano-me dizendo que a cozinha é uma arte, ou que o brilho da bancada é um caminho curto e rápido para a assunção da felicidade. esmaago o tempo entre os dedos, como massa de rissóis, prendo-me entre a ambiguidade da frase e solto-a, estudo-a, dissolvo palavras numa receita de salada, manipulo a língua em exercícios de papel que me levam às áridas frentes do estudo. inútil. não era preciso desfazer a língua para a entender, nem o tempo, para o suportar...

bastarias tu, e o teu sorriso doce à minha frente, tu e os teus lábios limpos e frutados que apetece prender como ginjas molhadas. bastaria a força do teu braço na minha cinta, um deleite de posse, na fusão de dois seres em partículas de átomos e núcleos de células e codas de sílabas e doidas palavras. não teria de fingir que tudo é importante à minha volta, quando só meia dúzia de coisas realmente importam. só teria de enganar o tempo, para que não fosse muito veloz, para que a receita demorasse, e nós, aprendizes de felicidade, a cozinhássemos com a lentidão dos druidas do passado e a solenidade dos deuses em humanos tálamos.

passo os dias a enganar-me. que o sol é a carícia do teu olhar. que a ridente nuvem foi um beijo que pintaste. que a partitura toca porque em teus dedos me tocaste, que a tarde nos eleva para o limbo da palavra e afinal, entre tanto engano infantil, em que nada é sem que a minha intervenção o faça ser, afinal, nunca me ocorreu que também tu tivesses de olhar para o brilho da bancada, ou para a natureza do tempo, como coisa inefável que se passa fora, mas sopra por dentro.