o dia anda a rosnar-nos no encalço, cambaleante a vela acesa nos olhos trôpegos, porque sim, é segunda-feira e o café não soube bem, talvez o carro que obrigou a uma paragem de abastecimento, o carro come vorazmente quilómetros de gasolina, quase é preciso deixar a maior fatia do vencimento, e o fumo, senhor, talvez fosse o fumo dos carros todos, apesar de novos e dispendiosos, ali estão inúteis na sua voragem de asfalto, lançando ameaças e rugidos sem sair do mesmo sítio. foi seguramente o trânsito parado, as gargantas abertas dos carros a cuspirem a basófia dos locutores da rádio, os lacónicos boletins do trânsito, em que o ouvinte é simultaneamente actor, e o sol a comer a pele, a manchar a camisola imaculada, sim, foi seguramente isso que tornou o dia menos ágil. depois foi a chegada ao gabinete com as pessoas cada uma no seu lugar, se ao menos as cadeiras estivessem em cima da mesa, ou a estante fora do lugar. abomino a ordem e sento-me na minha desordem. o dia começa. vem vindo trabalho, processos sobre processos, todos de ontem, mas para antes de ontem, vem vindo o sol de frente e o olhar martirizado, os estores que já pedimos e ninguém se incomodou em mandar, projectos e mais projectos, outras reuniões e mais propostas, a acta em atraso, o almoço já tão tarde e depois já não era bem hora e lá se vai ao bar, uma sandocha à pressa que a menina já limpa o balcão pronta para fechar o bar da repartição. podia ter ido lá fora, mas então teria ficado perdida entre o Tejo e a orla do olhar, numa travessa branca de tectos castanhos, a descer as escadinhas rente aos sonhos, a fechar os olhos com tanta luz. e as sardinheiras, e outras flores banais nas janelas com pessoas sem tempo, paradas a olhar, a olhar, dentro de si o que lhes está distante, e ao vê-las eu teria ficado no miradouro, sem nada sentir, como uma gaivota feliz, sob as asas a pensar, a pensar... até me despojra de todos os processos e projectos e análises e propostas... porque o verdadeiro pensamento é aquele que se produz sob a natureza calada e no alheamento dos homens e das suas vidas aglomeradas.
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