há tanto a inscrever na cronologia dos minutos. são ângulos, sombras, cores, momentos, associações, sons. agora estou a olhar para uma parede, mas o que eu vejo, por exemplo, não é uma parede, mas uma tela onde vivo para lá de mim. sou um filme e vejo-me projectada a uma rua sem trânsito daqueles que os gatos escolhem para estourar ao sol e o silêncio condena a boca de cena onde tudo se consuma e se consome. há fumo na chuva crescente e, por exemplo, agora já não sou a mesma tela, nem o mesmo take de há momentos. na tábua do tempo ouço, para além da chuva, o rasmalhar da pena no papel do cronista. as mãos rompem o branco, conspurcam com bocados de vida o desenho laborioso. tudo isto se chama spleen, um olhar encostado a uma cadeira instável. nada a registar. a parede branca voltou. chovem cadenciados pensamentos, desenhando no ar uma intimidade perigosa. desenha-se o eu que enfrento no recôndito lugar do escriba. esta noite não abro cartas de amor escritas em Kleenex, ainda assim a chuva não me lave as últimas palavras que o papel acabou de absorver - para sempre - palavras tão fundas, tão cavadas na garganta, inaladas como a chuva, a parede, o tédio e tudo que não tem mais existência real do que uma sombra - o dia em que auscultamos as batidas do silêncio, frente a uma parede talvez branca, a escrever os acordes da chuva e o sambar dos dedos no teclado, nesse dia, seremos cronistas de minutos que se esvaziam, enquanto passam, e a escrita será um gesto intencional, sem mais objecto do que o seu próprio preenchimento. só então podemos reunir o centro do mundo com o centro vibrátil da nossa verdade.
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