15.4.10

os olhos da manhã


a amanhã já trazia chuva no olhar, não era para ser assim, mas os deuses não devem saber quantas depressões a chuva morrinhenta faz crescer, ou polvilhariam urgentemente de sol a vida urbana. e eu,  o erro fatal da camisa branca, aos folhos, tão fresca e folheada que mais parece um fato de gaivota triste. sinto-me muito limpa sempre que uso o branco por fora e começo uma manhã branca e nova que ainda não tem os olhos tristes por excesso de rotina. perco-me numa pequena transgressão à ordem do dia, tal como uma paragem na estação de serviço do bairro para lavar o carro, quero lá saber de horários, apercebo-me de como sou livre dentro da minha grelha habitual, enquanto percorro amorosamente o carro e lhe retiro o pó da cidade, o barro, as cagadelas do costume. parece estranho que dentro dessa sensação de liberdade permaneça aquela borbulhante sensação de transgressão, como se fosse plausível e provável que ter horários rígidos seja uma situação conveniente,  (como ter um carro novo e poder mimá-lo), quanto mais não seja para poder iludi-lo (o horário fixo) não o cumprindo, sem deixar de o cumprir. produz melhor quem chega feliz. por que não se lembram as pessoas deprimidas de se deixar levar por uma pequena transgressão a começar o dia a comer um gelado, a dar duas voltas à paragem de autocarro a dançar o vira, a entrar num café e  a deixar atrás de si um rasto de guardanapos com misteriosas palavras que ninguém nunca viu e ficam a esvoaçar pela cidade como recadinhos de amor para-quem-os-encontrar. pois, se calhar dá muito trabalho ser feliz e é tão consolador maçar os outros com os buracos negros que são os olhos da manhã, quando uma pessoa triste a olha e, por mais que pense, não lhe resta um só sopro de prazer que a tente.



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