2.3.11

que tinham a esconder? era visível tanto nos poros inclinados de luz como nas franquias que as palavras tomavam o desvario de se terem depois de tanto tempo se adornarem com a ideia de tal se vir a dar. nunca tinha sido fácil esconder as cartas mal disfarçadas por entre metáforas e oxímoros atirados à ralé como pão de Deus dado ao Domingo por amor da fome (deles) de algo mais no rumor da urbe. outros olhos, talvez. porque os olhos nem sempre olham quando vêem, ou nem sempre vislumbram quando olham. mas eles olharam, vislumbraram e claramente viram o lugar que cada um ocupava no mundo e que era relativo, se não mesmo simétrico, medido a palmos de mão, a cumplicidades, a compulsividades que se foram mostrando. escrever e esperar. ler e responder. aguardar. mais um bocado. não está. não chegou. virá? os olhos na multidão, únicos e profundos, os únicos capazes de ver.  e essa visão biunívoca era já a propriedade que caracteriza, segundo alguns sábios, o caminho para o amor.

Um dia ela começou a escrever bilhetes sem nome que atirava pela janela e passou a descrever-lhe minuciosamente as noites do seu corpo. ele anuía, paciente, pigarreava, olhava para o lado.  corpo uno no silêncio. mais tarde veio o Inverno e foram apanhados longe sem as mãos poderem desviar o curso das neves. mas ela continuava ainda a mandar bilhetes. e por mais tempo continuaria, até a voz lhe doer. e doeu (...)  cresceram no quarto as cartas e os bilhetes, forravam já as paredes, forravam já as gavetas, forravam já a alma e a memória.  um dia enfim reconheceu na rua um maço de cartas dele. leu-as todas de um sopro, reencontrando-se entre as letras. tantas e tão belas, no recolhimento que a solidão dá ao amor refreado, quando o pudor de dizer é ainda um muro obediente. as cartas dele que ela nunca deveria ter encontrado. agora não sabe onde arrumá-las. por isso, decorou-as letra a letra palavra a palavra. são as cartas da madrugada. diáfanas e finas como a alegria que nasce em cada dia. e o frio. também o frio deixou de ruminar na pele. as cartas dele chegam cada vez mais claras, quase lhe chegam na cova da mão, de mão para mão. uma noite destas, não haverá metáforas que cheguem para esconder a emoção.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Deixa aqui um lírio

Recentemente...

Ângulos

Escuta Esta noite é mais aguda. Alguns cães ainda ladram à passagem da nossa sombra. Eu estou sentada no eixo duma escuridão sem nome. Tu re...

Mensagens populares neste blogue