24.1.21

Carta que não escrevi

Podia escrever uma carta para ti. Não precisaria entregá-la, também não saberia onde. Vejo agora que nunca soube o que fui no tempo, tantas as vezes que quebraste o amor como uma jarra súbita aos nossos pés. Como me afastaste até de mim. Tinhas de me afastar também na despedida. Tenho culpa no desvio que fiz ao rio do teu destino, eu sei. Reparo agora que também desviei o meu. Não vou escrever a carta que queria. Umas palavras entristecidas, apenas. Percebo que não as quererias ler. Saio com o ónus de tudo. E, no entanto, volto sempre a ti, um istmo indiviso da terra que sou. Desculpa se te quis tanto. Desculpa se te quero tanto. Não sei como te feri. Parece que te cansei com as palavras. Foram faltando. Parece que o meu corpo te ofendeu. Fui erguendo vida num sangue que não ferve sem um corpo. Preservei-me como uma árvore teimosa. A seiva dos meus dias e noites, os dedos amalgamados ao teclado e no sono, fiz tudo por ti, dei tudo por nós. Demais, talvez. Não sei onde fica a razão que te conduz. Nem sei como quebraste o fio de luz que sempre nos sobrava. Tenho pena. Mas não mágoa. Às vezes ainda penso que inventei o amor e a ilusão ao mesmo tempo. Vivo de mim mesma. Nunca saberás o que sou, o quanto sou, na intensa idade que tenho.

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