29.7.25

Epístola

Escrevo-te com estas palavras lisas, depois de passadas pelas correntes do tempo que tivemos. Meu amor, digo, e sei que não tenho cores que cheguem para te pintar o olhar com alegria bastante. Este livro é o caminho todo dos meus dias ao caminhar por ti, para ti, com a rara luz dos meus olhos. Tive as mãos sempre nos bolsos. Tirei-as apenas para te as estender. Meu amor, digo ainda. Sabes que, enquanto vivemos cada novo momento, já nos perdemos, nós que nunca nos achámos, a não ser nas palavras, como trolhas embriagados ao regressar a casa. 

A minha (casa) chama-se agora nostalgia. Refúgio de tudo, direção única, um só sentido, apenas o de viver. A nossa (casa) flutua na memória dos anjos, únicos seres capazes da nossa perfeição.  Falo da perfeição deste longo evento de busca e fuga, de encontro e renúncia. Fomos reclusos de uma busca de intimidade que nos tornou um só no desejo. Que importaram os outros?

Com o tempo, as pessoas começam a esquecer-se de mim e eu agradeço o lapso. Gosto de envelhecer com o esplendor do esquecimento. Mantenho as mãos nos bolsos, porque não tenho a quem as dar, mas sempre pronta a estendê-las para a loucura deste frio com que me aqueces em raros e episódicos momentos. Eu sou sempre eu. Lamento a incapacidade de fuga. Fui coerente comigo e contigo. Foste tu. E ninguém se compara a ti, nesta interiorização que cresce com a idade, meu amor, ninguém, ninguém. Não estou a morrer contigo, estou a viver comigo para te estender as minhas mãos, se algum dia as quiseres. Tenho o tempo que o tempo me dá. E o que o tempo me deu foste tu.


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