as melhores cartas que escrevi não passaram a fasquia da noite. escrevo-as no meu pensamento quando, alheada do mundo, me cristalizo entre os lençóis, magnetizada para vértices sem vectores precisos, mas orientados para algo impreciso, próximo de um veio que se afunila num túnel a caminho do lugar de um rosto, difuso, penúmbreo. escrevo-as na pele fresca dos lençóis, ao posar os cabelos na doçura de uma almofada, o melhor convite que o sonho ainda me faz. as minhas melhores cartas não têm voz e perderam as letras que as souberam ler. e os olhos também. as minhas cartas escritas na tinta do silêncio, sensíveis como o quartzo do tempo, inaudíveis porque as comemoro dentro. e vou, vagamente guiada por uma estrela que me aquece na mão que me toma. e eu só sei da urgência de ir, mas não quero, porque ainda não disse, ainda não falei, nem me exprimi, nem me dediquei, nem me doei, nem sei bem a quem, mas a algo que se consome na substância de outrém. já disse que é apenas um rosto, já disse que impreciso, mas intenso e forte, na sua ardência da estrela-guia do olhar. mas cada vez o conheço menos. só sei que vou e vou tão longe, ao fundo do tempo, ao sono sensível, aquele que nos prende de olhos abertos e mesmo mentindo, na verdade nunca nos mente. e a noite germina por dentro, numa falua de árvores alçadas ao vento, eu vou, sempre semeada de ternura. ninguém até hoje leu as minhas cartas, porque as guardo inscritas e puras na memória dos sentidos, onde vives e eu vivo.
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