28.10.10

suspendo o trabalho com enfado e um sopro fundo que parece esvaziar-me do pouco que me resta, tão diferentes são os tempos, tão taciturnas as noites com a poesia esmaecida, envolta em véus opacos, como um luar amassado que prende o coração da lua. o trabalho mata a criatividade. nunca hei-de recuperar os bocados de tempo que se esvaíram em trabalho, nem o trabalho virá em momento algum a fazer de mim uma pessoa mais feliz, talvez mais calma, talvez mais serena, mais forte, mas nunca mais feliz. ocorre-me a luxúria de uma ida ao cabeleireiro, com o sono a precipitar-se sobre o som do secador e das vozes, ou uma ida ao ginásio, depois a piscina interior, a sauna, os banhos, a sensação de renascermos. não mimo o meu corpo, nem me mimo de volúpias gastronómicas e outras, vivo do meu cérebro, da organização minuciosa das células nervosas com que me movimento. produzo o que me cumpre produzir, tratando de almas que elas próprias ensaiam já a sua produtividade ou improdutividade futura, ciente de que a mudança se faz agora. sou um ser activo, contribuinte certo, controlado, castrado, abusado na minha integridade de cidadão, mas retiro dessa consciência a amarga certeza da inutilidade do meu sacrifício. retiro prazer do meu carro, nas curtas viagens para o trabalho, na música que ouço, na visão urbana do mundo, a serra ao fundo, o cemitério virado ao sol e o arco-íris que volta e meia se me atravessa na estrada. vivo de pequenas emoções, ditribuindo sorrisos, recolhendo-os menos, mas insistindo em ver o que me rodeia, como se nesse flash único e irrecuperável estivesse encriptada toda a verdade que resgata e justifica a minha persistência. recebo abraços fortes de crianças (as pessoas esquecem-se de como as crianças adoram ser abraçadas). descobri que tenho a medida exacta do colo de que precisam tanto os que sabem sorrir sem medo do mundo como os que ficam a um canto da escola sem falar com ninguém, os que ainda não puderam comprar um computador, ou um mp3, quanto mais um hi pod, os que trazem ténis frágeis comprados no chinês, ou roupas que já conheceram outras mãos.  conheço-lhes o pensamento e o quanto estão perdidos numa nova escola, ou num novo país, ou numa nova comunidade, ou mesmo numa família que simplesmente não vê. alimento-me destes pequenos afectos e dos amigos que vou fazendo por onde passo. nunca são muitos.
alimento-me de ilusões. penso muitas vezes que o meu tempo não é em vão e que vai ficar qualquer coisa de mim, uma pontinha do arco-íris que ainda vejo pelas manhãs,  um sinal qualquer de que existi, uma frase memorável, uma foto guardada no armário de alguém, o molde do meu colo, mas nunca saberei, nunca saberemos o que de nós justificou a perda, a indizível perda dos bons momentos, das coisas maravilhosas que nos arrepiam a pele e nos fazem sentir magnificamente vivos e passionais...


boa noite, se alguém passar

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