30.1.11

as minhas mãos

as minhas mãos não se põem frescas e delicadas
pousadas sobre o colo, como fazem as madonas de Rafael
nos tectos dos palácios e nas igrejas

as minhas mãos percorrem todos os teclados onde
se produz o mundo que me espera, lugares do meu tempo
onde ato e desato os meus laços e me desprendo

percorrem quilómetros, as minhas mãos, presas num volante
e o pensamento a prumo; visito-me menina e leio-me
nos cadernos que escrevia com as mesmas mãos que agora
já são secas rosas de fadiga

ergo da tumba a minha mãe, árvore tombada,
com umas mãos iguais às minhas, que abriram
todas as portas de todas as muralhas em todas as
eras da sua vida inteira

as suas mãos ainda moldam esferas entre as sombras.

as minhas mãos só varrem a humidade e os despojos,
só fazem prodígios na superfície velha dos objectos,
sem luvas, sem protecção, não, não há milagres
na firmeza das minhas mãos

curam a tristeza e afagam a miséria, mas ficam
secas e tristes, tão sérias...

as minhas mãos cozem artérias, invertem teoremas
e cospem as certezas, as minhas mãos são aventureiras
e persistem, onde o tempo deixou barreiras.

só não se pousam no regaço plácidas, pálidas e etéreas
como as das donzelas de antes sob a sombra das figueiras


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