Acordei com o peso do mundo na cabeça e tomei um café amargo. Há dias assim. Só apetece abanar a árvore e fazer cair a casa.
Depeniquei uma dourada, coitada, se ela soubesse que afinal fica prateada após o fogo, depois fui lavar o carro, com o cabelo solto e selvagem. Qualquer mulher ou ser de basta cabeleira deve ficar a saber que isso é um erro. Ericei o cabelo, ainda mais e até entalei uma mecha na porta do carro. Enrolei-me no aspirador, pisei uma pastilha elástica que se colou ao tapete e praguejei.
Ninguém reparou em nada. Há qualquer coisa de místico para certos homens no ato da lavagem do carro. Rodeiam-no amorosamente, assentam-lhe o pano nas curvas, afagam, percorrem atentamente o semblante da viatura e extasiam-se com o brilho. Como iriam reparar numa louca que bate tapetes como se aplicasse golpes de karaté?
Nas mulheres o efeito é mais do tipo casinha limpa, vestidinho lavado, orgulho de género (que não me ouçam os fundamentalistas!). Anyway, energias desbloqueadas, lavar e aspirar o carro é como praticar yoga (para gente desajeitada).
No multibanco paguei o IRS e então percebi a razão do mau humor. Ninguém gosta de ter um sócio de negócios que só recolhe os lucros e ignora as perdas. Ocorreu-me que o estado é uma espécie de máfia que nem sequer faz a cobrança ao domicílio.
Talvez para me ressarcir do assalto,
resolvi comprar duas raspadinhas de um euro com as moedas restantes. Ganhei 10 euros à segunda. Pedi uma terceira. Nada.
Não arrisquei mais.
Estranhamente, o vento soprou com doçura e, embora miseravelmente despenteada, consegui sorrir. Encantamentos de uma tarde de verão destas do clima de Sintra que mais parecem de outono.
Voltei para casa embebida em tantas emoções. Ainda me habituo às férias e vou todos os dias lavar o carro e comprar raspadinhas. Ainda bem que o IRS é só uma vez por ano.
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