Ela tinha a mania das simetrias. Tudo tinha de ficar igual dum lado e de outro até quando arrumava as compras do supermercado na prateleira. O café entre dois pacotes de macarrão. As salsichas a ladear um pacote de bolachas. Sentia um impulso qualquer para preencher os espaços e o desequilíbrio das coisas, como se a vida fosse uma balança e tivesse sempre de ter os pratos direitos. Ao tomar decisões havia sempre conflitos. Eram duas opções de um lado e outras duas de outro. Qualquer decisão que tomasse quebrava logo a simetria. Por isso, o melhor era não tomar nenhuma. Até no amor gostava de simetrias. Receava sair com homens mais baixos ou mais altos e, naturalmente, nunca saía. Como o amor era a pior assimetria, nunca amou, preferindo a singularidade. Passou quase toda a vida sem se decidir a ser, como todos os outros, a imperfeita forma da assimetria. Um dia, pôs-se a caminhar pelo meio de uma estrada, junto ao separador das duas vias, entre viaturas que vinham dos dois sentidos, ela própria eixo da simetria. Morreu feliz entre dois carros, simetricamente perfeita como a métrica da poesia.
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