Escrevo com a memória de outras noites e, essas sim, eram noites de Natal. Não sei de onde vinham aqueles anjos de seda, aquela sensação de solenidade que nos embrulhava, o frio agreste no nariz, o fogo a murmurar segredos e o meu pai e os outros homens a cantar ao menino junto ao fogo da praça da aldeia, um presépio virado para aquele lume, o menino talvez quentinho das brasas, e depois também nós levávamos para casa o brasido e íamos comer uma simples açorda de bacalhau, ainda com os anjos de seda sentados nos sentidos. Não havia presentes, mas dizia-se que o menino Jesus descia pela chaminé na casa de alguns meninos para deixar uns chocolates nos sapatos, normalmente não se entusiasmava muito na casa dos pobres que, não raro, achavam as botas frias de manhã junto ao borralho das cinzas. E aqueles chocalhos matinais que os rapazes começavam a tocar de madrugada diziam-nos logo, olha, cá está, pontualíssima, a manhã de Natal. Onde ficou tudo isso agora? Cantávamos ao menino até nos correrem as lágrimas, hoje o Pai Natal ficaria perturbado com tão singelos costumes e teria tempo para passear de ternó nas avenidas do céu, sem a carga de desperdício que leva. Quando penso no que perdi, presumo que tenha sido a inocência. O Natal, se calhar, só existe para as crianças, as que nascem em piores ou melhores condições que o menino. Apenas eles sentem o sopro dos anjos. Nós fazemos o maquinal arranjo de luzes, bolas e prendas. E comemos demais. Só espero que os nossos meninos saibam porque gostamos mais da família nestes dias e porque nos juntamos, na esperança de ver a tal estrela da noite primeira nos nossos corações. Aquela que nos guia para junto dos presentes e dos ausentes e nos deixa o colo cheio de ternura.
Noite Feliz, com a magia de outros tempos!
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