manhã de Domingo escura e lenta, molhada de pérolas intensas, estas escassas gotinhas de água arribadas na janela. sustenho com ambas as mãos este silêncio que a casa me oferece. cá em cima, nada se ouve, aqui só o som das teclas, o sincopar das vírgulas, a hesitação de cada ponto, antes de decidir fechar a frase. cada período fica incompleto, nunca diz tudo, nunca nos pervalece na sua razão, porque escolhemos só uma estrada de cada vez e regressamos, buscamos outra, viramos, contorcemos o texto, porque sabemos que não é nada disto que queremos dizer.
é fácil descobrir como, neste silêncio em que só eu habito, o meu texto tem amarras, âncoras que não subo, para que não me vejam o solo onde me fundeio. a minha autenticidade não emerge, nesta sintaxe vigiada, medida ao milímetro para obter a eficácia máxima no que digo. quero tocar-te com a efusão dos sentidos, mas o que escrevo do que sinto é um organismo racional, vigiado, contido, denso, exactamente como se, estando juntos, as minhas mãos apenas aflorassem, apostas sobre ti, o dealbar do corpo...
gostava de saber como os poetas caldeiam o silêncio, de que furma transformam em ouro o vil latão, onde vão buscar as centopeias vivas que se contorcem no poema, onde encontram a água que escorre, o sopro de vida que mitifica cada verso como se já tivesse estado antes em todas as bocas e ninguém o tivesse conseguido realizar assim...
talvez se eu sangrasse, talvez se me viesse mais dentro o pulsar do sangue, ou se tu me desenhasses o teu mundo em letras grandes, ou me ancorasses num ocasional cais de mudança, talvez então, pela tua mão eu deambulasse os meus sentidos, sem ser uma sombra, sendo-o, sem mondar a escrita de modo displiciente, deixando-a sim crescer como secreta relva, erva promissora dos nossos dias, cortada rente, podada, bela na sua morfologia irreverente... não quero cuidar de mais usar a razão quando me escrevo. diz-me se tens o segredo, se depositas na tua mão de poeta a estrofe momentânea onde bebe este quotidiano lento, escuro e molhado, como num conto de Dickens, demorado no resgate da esperança.
olha como o Sol, só com estas palavras, me autentica, talvez porque escrevo o que sinto, porque me faço brilhar na verdade das palavras. o dia é um processo lento, a escrita é durativa, decorrente, consome o tempo e muda com os caminhos que percorre na face da terra onde acenta. a manhã ficou ridente, o sol alteia-se no céu, contemplado os despojos da chuva, aquecendo o solo, como um corpo de amante. e eu vejo o dia a chegar-me, na sua realidade presente, respondendo ao apelo das coisas concretas e prementes, como percorrer o dia com os meus pés e acariciar a vida, sentindo no rosto o beijo quente e frio deste dia de Inverno. depois, ser simplesmente feliz, como uma larva ao sol, ou um bicho esvoaçante. posso agora encerrar o texto, enchendo-o de sol, para que fique a brilhar mais tempo e te aqueça, meu amor distante, como às plantas da horta, ou às ervas do brejo. e que tudo em nós seja o mesmo próximo presente, como era dantes.
Bom Domingo!
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