28.11.08

carta

carta que te escrevo no manto do frio desta noite, noite projectada aqui e ali em mil sombras, onde quer que um homem se reúna à sua própria solidão. carta de mil folhas em que as palavras apenas na aparência se alinham no sentido que a sintaxe lhes dá. estou aqui nesta imprecisa fuga da chegada, a olhar-te, como se olhas o fluxo lento da corrente. e como um rio, é serena a tua gesta. leio na tua fronte amantíssima a contemplação de sonhos que só tu vês, as luas bordadas de corais e o cantar lânguido das faluas paradas contra o cais. e ocorre-me que de ti, essa é a única certeza que me vem. o sonho que te embala no recorte das palavras. e desde que vieste, nada mais meus olhos puderam contemplar que não fosse a lente dos teus. vicias-me os minutos, as recordações, os versos, a minha voz vive de ti, transcorre de todas as coisas que há no mundo e me reúnem a ti.
meu amor, não sei escrever-te cartas que não sejam flores. podia falar-te da falta que me fazes mais perto do mundo, o dedo na liga, as mãos em concha nos seios, o riso em cascata, a anca no anel do teu abraço e o tempo a soltar-se como flocos de neve, na rusga do tempo perdido. mas sei do teu sonho de luz e fragamento-me em mil cristais de palavras sem sentido nenhum, a não ser o de chegar a ti, candeia frágil, intermitente, nem sempre ampla e cheia, nem sempre resistente. sei dos ventos desta noite, tão sibilantes, quase secretos, sei da chuva a penhorar a memória, quantas noites desta mesma ascese de só te imaginar, sem que uma voz me dissesse que sim, que o vento sopra também no teu peito, na mesma alísea saudade. sem ouvir de ti que estás na mesma artéria onde o sangue me investe... mas sempre com a certeza de me aconteceres pelas mesmas horas, nas mesmas vestes da pele, no mesmo silêncio agreste, como hoje e em noites de mais tempestade em que a vida nos acresce. não tenho jeito para estas cartas, escrevo-as porque exaltam o amor e servem-nos de pontes. serão só flores que recebes, flores de crepe, moldadas ao ritmo da chuva, no quarto que nos recebe, será só seda súbita que nos acomete... mas eu escrevo-as, e peço ao vento de hoje que, com um beijo de profunda ternura, as dissemine pelo ar que respiras e o meu ser se te faça presente, como o teu que em noites como esta me é lugar e leme. esta é a carta de acolher-te menino e homem, na segurança deste abrigo onde me parece aflorar a superfície quente da tua pele. dorme bem amigo, amante! o teu nome pousa nos meus lábios e a noite regressa-nos...


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