23.8.10

Em fim de estio...


A chuva é um filtro leve e limpo no ocaso hoje raiado a cinza. Cheira a terra molhada e a fim de estação, como se o Verão quisesse chorar a dor da despedida. A cidade mergulha num recolhimento molhado, escorre na humidade das janelas, veste-se mais cedo para a noite, declina, enovela-se num silêncio sentido. Nas casas  há gente que contempla a roupa que foi colhida no espanto da chuva, ou que prepara o jantar, com pensamentos sóbrios, avisada pela chuva de que as largas noites quentes vividas no exterior se deslocam agora para o interior, a parte onde o espaço e o ser se encontram. Os olhos recolhem um toque de solidão, as árvores pingam para o solo, as aves reencontram seus lugares mais reservados, onde não há homem que as veja. Os pássaros vão com a chuva. Fica ainda mais silêncio, onde havia o alvoroço do crepúsculo. Os pássaros foram mais cedo. A chuva veio lembrar que nada permanece, nem sequer as longas noites em que as estrelas compõem espigas no céu, palha longínqua que estremece e pulsa. A chuva adormece por dentro e desperta por fora. Já é tempo de ir. Deixar para trás o que o Verão adormentou e rasgar os dias com a força de um gigante e a subtileza de um pássaro a fugir à chuva. Foi um tempo ilimitado, horas e minutos sem expressão, textos escritos nas nuvens com a palavra recôndita, com os olhos turvos, a fala recolhida. Era Verão e não havia nada para fazer, a não ser ouvir. Guardo as vozes e os sons. Para o próximo ano regressa a montanha, a branda voz dos rios, a cegarrega das cigarras, o som dos muros dos quintais, a breve travessia dos seres rastejantes, o luto das oliveiras, a sombra patriarca das figueiras. Para o ano, vou ser feliz. Agora é a cidade e a chuva e a insónia dos dias que sobraram para a noite. Retomo a minha voz. É um fio finíssimo de chuva. Nada diz. Apenas sente.


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