9.8.10

chuva de cinzas

A bola de fogo lambeu todo o azul do céu, manchou o ar de tinta opaca e espalhou uma nuvem compacta feita de escuridão. À terra verde começaram a chegar fagulhas negras que ficavam dependuras nos ramos de folhas frescas ou nos cabelos das pessoas. Veio a neve cinzenta e o cheiro ardente do apocalipse. Era estio e o céu demorava-se sobre as cabeças com uma pressão de ferro. Foi assim durante um dia e uma noite e a terra ardeu por fora numa extensão que ninguém conseguiu medir. Ao terceiro dia, o fogo atingiu o céu e os deuses carregaram as nuvens com a sua ira. raios potentes foram deflagrados e os homens acoitam-se dentro de lugares civilizados e fugiram da água. ardia céu e terra e os homens pensaram que era chegado o dia do ajuste de contas. Foi então que, quando os corações se contraíam de impotência, desmoronou do céu uma chuva finíssima, tão lenta e fina que só mais tarde foi possível ver que cobria de cinza todas as coisas vivas e toda a matéria inerte da região. quando acabou, os homens suspiraram de alívio e limparam as janelas, lavaram os carros e os cadeirões das piscinas, renovaram a água das mesmas, e tudo voltou ao normal. Esqueceram que a ira e posterior complacência dos céus havia começado devido à imponderação dos gestos humanos, no descuido de alguns, na inconsciência de outros, no excesso de confiança de todos. A vida continua, dizem, mas a mensagem ficou, escrita a cinza à superfície da terra. Lavra-se a presente acta de um dia em que, linguagem metafórica à parte, os céus choraram as cinzas de uma civilização litoral, de costas viradas para o centro do país, o deserto que recebe a desatenção dos políticos, para o coração de uma terra viva que se debate com a globalização e com os efeitos sumários de outras palavras subitamente muito necessárias, como sustentabilidade, como crescimento,  como desflorestação, como abandono...


Sem comentários:

Enviar um comentário

Deixa aqui um lírio

Recentemente...

Ângulos

Escuta Esta noite é mais aguda. Alguns cães ainda ladram à passagem da nossa sombra. Eu estou sentada no eixo duma escuridão sem nome. Tu re...

Mensagens populares neste blogue