Não consigo viver mais dias. Já são tantos e tão inúteis. Preparo lentamente a minha fuga, a maior de sempre. Será rápida e ninguém dará por mim, já que, presente ou ausente, ninguém me pressente. Falta aqui uma palavra. Uma só. Um só lírio. Nunca se ouve uma voz. É uma peregrinação que me assusta. Como se, na verdade, as minhas palavras viessem de um túmulo e esse túmulo fosse o meu. Pois bem. Que assim seja.
CANTEIRO DOS LÍRIOS
De lírios aqui se fala. Delírios e dores, areia das almas.
16.8.25
12.8.25
Carta
Na vida, o único sentido é o amor, o mais fértil dos sentidos é mesmo o amor, desculpa, passei toda a minha vida a dizer-te que só amando morremos melhor, (já que viver de amor é poesia), e agora já não tenho a certeza de sentir que sim, que ver o mesmo pôr de sol de mãos juntas, beber palavras pelos olhos e lacrimejar de emoção na mesma dimensão são as coisas que contam e que contamos, com o rosário de contas da narrativa que nos conta. Tenho tentado dizer-te que o vazio só está onde não está o outro. E se estiver o outro e houver vazio, então, esse não é quem amas. Não sei que mais te diga. Tens-me mas não me tens e eu não tenho nada. É uma deriva que leva à única conclusão possível. Nunca poderemos absorver mais do que a essência e essa é a sede maior da existência.
Mas entre perder o que és ou viver o que sou - passou toda uma vida.
Enfim, depois de tudo, alguém pisará as minhas palavras e cortará as minhas emoções, como caules secos, mas que não seja ninguém mais do que tu. E que te preencha a face do desejo.
6.8.25
Verbo declinável
Soubesses tu como te anseio, não como verbo declinável mas como o verbo do corpo
Virias, sem luto, sem estrias no peito, nada. Vinhas e pronto.
Sim, a solidão é minha. Mas não a quero. Obrigada, adeus. Que venha a próxima emoção. Ou nenhuma.
30.7.25
Incêndio
29.7.25
Epístola
Escrevo-te com estas palavras lisas, depois de passadas pelas correntes do tempo que tivemos. Meu amor, digo, e sei que não tenho cores que cheguem para te pintar o olhar com alegria bastante. Este livro é o caminho todo dos meus dias ao caminhar por ti, para ti, com a rara luz dos meus olhos. Tive as mãos sempre nos bolsos. Tirei-as apenas para te as estender. Meu amor, digo ainda. Sabes que, enquanto vivemos cada novo momento, já nos perdemos, nós que nunca nos achámos, a não ser nas palavras, como trolhas embriagados ao regressar a casa.
A minha (casa) chama-se agora nostalgia. Refúgio de tudo, direção única, um só sentido, apenas o de viver. A nossa (casa) flutua na memória dos anjos, únicos seres capazes da nossa perfeição. Falo da perfeição deste longo evento de busca e fuga, de encontro e renúncia. Fomos reclusos de uma busca de intimidade que nos tornou um só no desejo. Que importaram os outros?
Com o tempo, as pessoas começam a esquecer-se de mim e eu agradeço o lapso. Gosto de envelhecer com o esplendor do esquecimento. Mantenho as mãos nos bolsos, porque não tenho a quem as dar, mas sempre pronta a estendê-las para a loucura deste frio com que me aqueces em raros e episódicos momentos. Eu sou sempre eu. Lamento a incapacidade de fuga. Fui coerente comigo e contigo. Foste tu. E ninguém se compara a ti, nesta interiorização que cresce com a idade, meu amor, ninguém, ninguém. Não estou a morrer contigo, estou a viver comigo para te estender as minhas mãos, se algum dia as quiseres. Tenho o tempo que o tempo me dá. E o que o tempo me deu foste tu.
15.7.25
Nevertheless
I may cry in silence, yes, I might even dream of you sometimes
Nevertheless, nothing else is quite the same
It's true I cannot stand loneliness by my side, instead of your sweet presence
Nevertheless, it seems my destiny is this permanent inner liveliness
A fake joi, fake smile, soft manners for dogs and wolves running behind other people lifes
Nevertheless without you I'm alone and no poetry, no deep words, no strong feelings are to arise far from your sweet skin
I might be alone, yes. Did I choose this mood? Nevertheless, we came a long way to stand here
Isn't it time to stay together, as life is the only flood?
10.7.25
Doce vocativo
Meu querido, digo eu num fio de voz. Meu querido, doce vocativo,
Na casa morna, no canto estreito é aí que eu digo
Que as estrelas se desliguem como pirilampos cegos
Se eu não te chamar ainda, meu querido, meu terno vocativo
E que a casa não se abra ao som da minha voz se eu não te digo e repito
Meu querido, leve poeira luminosa num raio de sol, tua voz aviva a cera com que o digo
Meu querido, é o que eu sinto e tu reclinas a voz. Era sábado ou domingo e eu acordava no corpo da casa, tua ambarina voz, meu querido, rasava-me o ouvido
Agora digo com muita e depois nenhuma convicção, cada vez menos vivo, a voz quebrada no soalho, quase um grito
É assim que eu digo e recito uma lauda de improviso
Que as flores todas se turvem se eu não te chamar ainda, no vão da casa, meu querido
Como um eco que se repete, meu querido, eu digo o doce vocativo, e digo, digo, digo
E o teu nome ido, ido, na casa onde um dia a alta voz dos teus passos se perdeu no mundo
4.7.25
Poemas de partir
Alguns poemas são virtuosos. Valem ouro. Outros cheios de pena, voam pouco. Outros ainda são tontos e bailam muito.
Mas os meus preferidos são lachas de partir entre mar e vento.
Daqueles que sentes como se estovesses lá, no equilíbrio mais improvável, aos saltos loucos e imprudentes.
26.6.25
Saudar o dia
Há uma ave que não se cala, mesmo aqui ao lado. E canta com o propósito único de saudar o dia.
Quero que se cale.
Que o meu choro seja audível pelas raízes fundas e pelos campos ao redor.
Quando a dor é real, não há poesia bastante para calar o canto de uma ave. Muito menos de uma mulher.
22.6.25
Oração em tempo de guerra
A dor de todas as guerras
A razão de cada povo, a guerra santa que foi, a guerra cega que é
A guerra ázima de ambição
A guerra oleosa do medo
A odiosa guerra da vingança
A prepotência nas vozes que se ouvem, inferno a céu aberto
Fechá-lo urge
Os lobos, em segredo, nas montanhas, rugem
Cega, explosiva, a guerra lá longe, arde-me dentro
Levai, Senhor os homens de armas, lavai, Senhor, o clima dos seus olhos
As feridas na carne dos teus filhos, Senhor, e os teus filhos são todos
Levanta alto a tua mão e volta atrás ao paraíso
Antes do homem querer tanto saber tudo, querer tanto ter tudo e pensar que é tudo
21.6.25
Matéria
Esta noite, poderias prender as minhas mãos nas tuas para lembrarmos tudo que se derramou de nós, ao enchermos o tempo de inútil semântica
Porque, ouve, eu não sou esse ser etéreo que sai da campa
Nem este chão rasa as nuvens de onde me vês, de onde vens
Por isso, talvez, digo eu, esta noite poderias ter forma e enformares o silêncio com essa planura leve da tua voz
Já que eu sou etérea como um voo de mosca que se alimenta da solidão
Quando o meu corpo é ainda o corpo do amor e a pele informa a idade com que me deito
Sou também matéria atenta dos vermes, mas antes ainda queria olhar o mar sem versos nem vidros
Ver o sol sem rimas ardentes, para vermos juntos o verdadeiro reflexo da dor e depois talvez um "para sempre"
E então, diz-me, com esta rosa de vida que te dou, arrancada aos cardos mais secos do deserto, a morte, como a sentes?
18.6.25
Reboot
É melhor deixarmos de olhar para trás. Já vai longa a despedida e o poema já perdeu a vela, a luz e a vida
Se te encontrasse de novo, eu sei o que faria. Um reboot total no tempo, uma pele híbrida, um código de amor intenso
Uma inteligência dos sentidos que fosse do mais puro artifício e nos desse a loucura dos sonhos vivos, a peleja dos mais doces vícios
14.6.25
A clara névoa das fontes
Paixão camoniana
Meu amor, cai a neve, cai o tempo, vive a luz azul da floresta.
Tudo cai, quando algo maior que nós se levanta.
A suavidade de um gesto lindo e uma paixão camoniana fica, permanece, resulta. E é tanta!
A maior suavidade que me dá a vida é esta luz que ora se apresenta.
Porque te busco agora e sempre e mais e mais me encantas?
13.6.25
Travessia
Sim, foi uma longa travessia. O deserto encerra aqui a solidão. Quem, onde?
Ninguém. Aves voam sem mim que nunca voei com companhia.
Não é volta. É revolta. Devolução.
Já nada importa. Nunca sequer provei da vida o melhor mel. Sabor a nada em fim da festa.
Porque hoje, nem comigo consigo contentar-me e a única voz que tenho é esta.
Brilho
Nos teus olhos o brilho que nunca vi nos meus. Imagino que foi tudo um sonho longo que só sonhei eu
E lanço-te ao rio numa folha forte na jovem corrente da vida
E, assim, deposito flores na tua sombra, doravante despedida ao vento
E fico firme em meu saber: no amor, o brilho acende só quanto se sente
3.6.25
Levitação
Tu levitas leve e elevas com leveza a nuvem que o vento leva
Tu és um contemplativo momento e sabes que a contemplação cria o desejo
E eu nem sequer consigo ver que levitas leve
Nem que elevas com leveza a nuvem
Tão pouco sei que o vento a leva
Provavelmente, não vejo a nuvem
Nem o teu contemplativo momento
Mas penso em ti por dentro e sei que só eu sei como levitas leve na minha nuvem de pueris sentimentos
31.5.25
Exangue
Perdemos quase tudo nesta vida, sobretudo o xadrez do tempo, a jogada de mestre que nos faria ganhar. Esgotamos sobretudo os sons da voz. Esgotamos a paciência, a vontade de acreditar, esgotamos a água e até esgotamos as memórias.
Mas de todas estas perdas, a pior é a do sangue. Gelam as veias, gela a paixão, gela a vontade de rasgar os panos do tempo, essa transfusão de amor que fazemos do passado para o presente
Custa-me dizer-te que sou um espécime antigo, habituado a sangrar com abundância. Vejo-me exangue a olhar-te daqui, tu que ainda oxidas o (meu) sangue com a beleza do olhar
Mas digo: esgotámos o ar fresco das árvores, a brisa maior do mar. Esgotámos os encontros e o crédito das estrelas, como quem viveu demais nelas até abraçar este mísero chão
Meu amor, diria eu, qualquer rubor que me vejas mostra que a tua imagem me transfere um capital cheio de graça e isento de dor
Mas o sangue, senhor, ferido que foi o corpo com adagas de solidão, o sangue vegeta, verme lento que busca a terra e nela entra
26.5.25
Carris da noite
Lá fora, os carris da noite correm em direção ao mesmo fim
Passam desmembrados em sibilinos sons nos socalcos da cidade
Nós desembrulhamos a manta e com ela nos mantemos, meticulosamente sérios, enquanto os ouvimos ir e vir
Os carris da noite agudos e sublimes
Vamos mas ficamos, dentro da pele sustida, como quando o mundo nos espia e ouve
E nós os únicos com vida
Linho fresco
A noite é linho e luz até chegar a madrugada. Apenas estás lá. Não sabes nada.
No leito flutuam flores de seda álgidas. Por onde anda a tua alma?
Nem sequer pensas nem sentes, és a seda e a verdade nos sonhos que te devoram até de madrugada
Viste casas, vistes rios inusitados, viste ruas cruzadas com demónios nas portadas.
Recordas tudo? Não, não sabes nada. Só uma sensação de linho fresco e um peso na almofada
25.5.25
Dantes e agora
Dantes, havia palavras alinhadas e prontas como telhas lusas de um telhado qualquer
Dantes destelhavas-me o coração e eu queria essa luz que então entrava
Dantes e agora, meros deíticos de um peso morto. O que te escrevo ganhou musgo. As tuas palavras deixaram de correr pela caleira, a limpar-me o rosto
Por quantos limos limpes, por quantas vezes me fales, fá-lo com apreço e mimo, porquanto este é o meu novo estado
De era pendente num velho telhado
De era imprudente que sobe para um céu onde não há ramos nem galhos
21.5.25
En garde
Mets-toi en garde, je suis encore vivant, dit l' arbre, presque aveugle, pour jadis distant
Hélàs, la vie est morte, dans mes veines de vert sang
Mais, écoute
Je me prends un peu pour jeune fille de feuilles brillantes
Avec ma fièvre et ma dentelle et mes racines épargneés par le temps
Je suis la belle oubliée au bois et je suis pour toujours dormante
14.5.25
Chegada
Mas se vens, porque não vieste?
E se vieste a que vinhas?
Se vieres, vens bem-vindo, nas tuas misteriosas vestes
E na escala em que puderes, aparece, nada te impede de ver se sou quem nomeaste
Vir nem sempre é chegar e, como sabes, às vezes escurece
Mas vem, pode ser que me detestes
Circular
Ouve, acende bem o olhar. A história é circular e o caminho igual
A tua história sentido inverso, a montante da minha
É o musgo em que escorrego e escorrega a voz
Amiúde
O final feliz, o golpe de misericórdia na orla da cruz
Não é como pensas, não, o tempo esvai-se e não se reproduz
E eu não tenho a pele nem o lustre da manhã - esta plena palavra perece
Porque a história é circular e o caminho também se esquece
4.5.25
Dia da Mãe
Puxa a si a manta que a separa das bátegas de água e do frio. É domingo e o céu castiga-lhe as asas mortas. Não consegue sequer elevar os braços ao céu para pedir clemência. Passam mães e filhos e gente com ramos de flores e presentes. Vão com a pressa de quem tem um encontro marcado com a vida e com a ternura.
Ela começa a contar pelos dedos os filhos que teve. Imagina-os arrastados pelas circunstâncias, talvez tão afortunados como ela.
Foram saindo de casa um a um. Quando o pai morreu, quiseram vender o abrigo familiar. Para criarem os seus filhos, diziam, e a vida é mesmo assim. Ela sabia.
Quando a parte que lhe coube da casa desapareceu, deixou de poder pagar o quarto na casa da Adília.
Nenhum filho se importou e ela também não. Estranhou a primeira noite, chorou na segunda e em todas as outras noites. Se não havia chuva, era uma bênção dos céus.
Quando lhe voltava à memória o nascimento de cada filho, conseguia ser feliz.
Mas, nos últimos tempos, só tinha aquela manta a que sempre chamara sua, memória dos dia de abrigo, memória de algum amor, para obter conforto. Era Dia da Mãe e ela só gostaria de saber que um deles, ou alguém, se recordaria dela nesse dia.
Ou noutro dia qualquer.
A dor do mundo
Naquele céu há pássaros que a tempestade espalha, como um véu de aço em movimento
Assim os vejo, rajadas de um fogo aflito
Se eu tivesse ar e respirasse talvez pudesse voar nesse céu coberto de dor, alheia à dor do mundo, que é pior
E tu, amor, tu apenas, doce amor, eras a nuvem, com a crina de um cavalo no olhar
Mas nesse céu as horas e os dias são de uma vida que passou, um céu tão antigo, que abri-lo seria como a dor do mundo, que é pior
Assim vejo esse tempo, rajadas de um fogo aflito, um véu de aço muito transparente, éramos puros e estávamos ao alcance da mão
Era um fogo lindo, agora lento, como um barco que se afundou
Se quiseres vir, com a mesma aflição das aves, procura nos encombros a (nossa) minha verdade.
Mas vem. Para seres a nuvem que tem a forma de cavalo intemporal. Talvez me leves para onde os homens ainda saibam amar
3.5.25
Tétis
Veio incorpóreo, o adn só impresso no ar, a vocalização sem voz. Expresso o som, validamente, reinicia as sombras da ilusão
Fero sopro na teia que ateia
Não serei o gigante, corpo de pedra, rodeado pela ninfa que arremete
Veio incorpóreo. Assim perece. Paixão assim inerte
Qual a ninfa que pode o corpo de um gigante? ¹ Que gigante encolhe, no corpo de uma ninfa
E como cresce?
¹ Inspiração camoniana
1.5.25
Chuva no telhado
Ouvindo a chuva no telhado, palpando bem a solidão, pergunto-me: se não fosse esta trovoada seca que aí vem, se não sentisse inusitados medos, sentiria esta falta profunda dos teus dedos? A tua mão, se me tocasse, quantas cordas tocaria? Dá que pensar o desvario de regressar uma e outra vez ao teu amor, como se existisse. Este medo primitivo de não haver nada mais além de mim, ninguém mais além de ti.
29.4.25
A raiz
Nada. Não tenho nada. Saltei tantos ribeiros que cheguei de olhos cheios à terra seca
Fui como a água de um lago quente, doce e limpa. Depois derramei-me sem rumo, à espera
À espera de algo que, afinal, só podia estar na raiz mais funda de mim
Pouco posso dar, perdido que foi o momento certo, o tempo em que dar era a espinha dorsal do meu ser
Agora só quero receber. Seja o que for. Aceito sorrisos e piscadelas de olhos, aceito desafios e corridas para ver quem chega primeiro, aceito os anos e os erros dos outros, aceito maratonas de séries negras e marés inesperadas no olhar
Mas saberei dar? Sim, o olhar sereno de quem se aceita assim, enfim nua como sou. A raiz sólida que prende a terra com sede de a possuir
25.4.25
Charada
Quando meto a marcha à ré, nunca sei se devo olhar para trás se para a frente. A medição das distâncias, muitas vezes, não depende dos olhos, mas da visão que se tem da manobra. Tal e qual como o coração que não distingue as dimensões do tempo, quando no passado vê o futuro, o que é sempre melhor do que ver no futuro apenas o passado.
23.4.25
Sombras de Luz
Esta noite não há vento. Os meus dentes não rangem, o meu corpo solto no universo tangencial
E os meus pensamentos presos saem por aí, atraídos pela imponderável ideia de ti
Mas, então, encontro-te.
Não há vento, nem gente a ranger os dentes, por causa de um demorado inverno, o preço das coisas ou algo assim. Só nós.
Respiramos a dor passada mas somos tinta e pintamos ao som da noite as sombras de luz mais belas que já vi
Somos os sultões do swing, os reis do mambo, os loucos do tango, tangente e ininterrupto
Somos a tinta do verso impuro que escrevi.
Enquanto nos espalhamos ébrios pela música de um silêncio e dançamos mudos, assim.
Apetece-me viver. Viver como quem está vivo. Viver contigo, vivos como antes de o tempo nos cobrir de esquecimento. Mas não sei dançar na tua cor.
Como é que vivem os vivos quando não há vento e as árvores que somos se soltam das suas raízes?
19.4.25
Árvore oca
Andamos assim na dança, ora eu ora tu saltamos, ora eu ora tu ficamos
Desviados na volta, desavindos na vida, um rodopio de saias e de versos, de sons nítidos de dor, notas finas de uma agulha
Eu e tu somos como a árvore oca que ainda espera a primavera e as novas folhas. Que ao menos um pássaro pouse e a árvore cresce.
Não vês? Eu e tu somos apenas o rumor de uma prece, o pássaro que ainda vem cantar a morte.
15.4.25
A poesia do mundo
A poesia do mundo está no cruzamento de duas estradas, exatamente aí, onde o olhar que vê encontra a natureza.
O horror do mundo está na urbanização de gente pobre bombardeada pelos olhos que nunca viram a poesia do mundo.
Tenho pena de quem não carrega a poesia no olhar: a beleza das coisas feitas, não a entendem
Mas tenho mais pena dos que carregam sozinhos o mal do mundo, longe de toda a criação original
13.4.25
Completiva sombra
Ainda agora sempre soube que és completiva sombra do meu ser
Que vontade de celebrar orgias nos teus olhos, esses lenhos de muita dor
Pergunto o oráculo, com esfinges lisas e longas, ledas emoções
Douradas mãos condutoras de luz
Quando as senti no meu rosto, assim? Com cidades cruas entre nós, fogo de um lago alagado de pus
Sem que claramente soubesse, eu, serenamente, me fui
Mas, porém e ainda, que vontade de encenar contigo a palavra que seduz
15.3.25
Som /S/
Sabes o sangue? A seda, sudário, sedução e sede
Sabes a semente, sémula, sépia na pele
unção e neve se o solo cede
Sabes o sono, silva, salva, sonho deserto
paixão?
Sempre será assim sagrado segredo, de sibilante silenciosa
intenção
Eu e tu e um sol cenário de separação
Se souberes o sonho e ler o sulco do semeador, o sítio surge e é apenas
Um cenário de distante dor
Seda sudário, sede, cedo sabemos o que for e o que não for
14.3.25
Com pena e penas
Há poemas com pena, muita pena, e há poemas com penas
Uns têm apenas a pena com que apenas alguém os escreve
Os outros estão cobertos das penas que dão asas
Eu gosto mais dos que voam, na lijeireza dos sons e seus nomes
Os poemas cheios de pena são vogais arrastadas pelo lodo
Pena tenho eu de quem não faz poemas
Com as penas garridas
Dos pássaros vivos das nossas vidas
8.3.25
Ábregos
Os ventos viajam por dentro de nós, são o ruído do universo nas pálidas vidraças que somos
Longe, as vagas altas fortalezas caem vorazes nos penedos com assassinos ímpetos
Resta-nos a harmonia, no reverso do tempo. Ouvimos a chuva e sabemos cadenciar os ossos, resumir o medo
Lentamente, os ábregos cedem e são só rios de silêncio o que ouvimos
As tempestades servem-nos a paz numa rajada de silêncio
Sempre foi assim no coração dos homens, essa sabedoria, esse abrigo, uma volta completa no rumo dos sonhos, um lugar onde já não somos o que fomos
15.2.25
Fabricante de Sonhos
Num sopro de luz, tu voltas, fabricante de sonhos, para me temperares um pouco a pele, um pouco a vida
Se me riscas os sentidos com a centelha que acarinhas, talvez te cruze nas palavras, outras vez desprevenida
Como se todas fossem minhas
14.2.25
Epitáfio recomendado
Comecei a desaparecer suavemente, com a mesma anónima entrada que fiz no mundo
Vi com estes olhos a ruína do mundo, o mover de lodos e areias e fechei a porta a todos
Fui com sinceridade falsa e falsa fui comigo, ao mentir o que digo e mesmo o que não digo
Esperei demais por quem não vinha e quem veio não me encontrou
Foi pena. Há vidas que se perdem num horizonte de saída
Para a longínqua névoa nunca cumprida
2.10.24
Ângulos
Escuta
Esta noite é mais aguda.
Alguns cães ainda ladram à passagem da nossa sombra.
Eu estou sentada no eixo duma escuridão sem nome. Tu recitas versos de luz e eu acendo os olhos cansados.
A noite é aguda, como sabes. Há ângulos que desconhecemos.
Por exemplo, esta pode ser uma noite de cometas e prodígios, estrelas cadentes risonhas com um laço azul na Lua.
Ou pode ser apenas um ângulo equilátero em que todos os lados estão previsivelmente certos e tu estás longe e eu estou perto ou o inverso, mas estamos os dois igualmente distantes.
E sós.
Deixo-te um nó na garganta para desatares, se quiseres, deixo-te pontas para atares a tua vida à vida, o ângulo mais congruente da existência humana.
Deixo-te o fino sopro da minha voz.
15.9.24
Lua amada
Viver perto do outro
Quando ganhamos idade, aí umas seis dezenas de anos, temos a mão cheia de sentimentos doces e pacatos
Como a fruta fora de tempo, o sumo é feito da luz que nos crestou
Já não vivemos o amor, aquele que nos dilacera o coração, mas começamos a pensar que amar é exatamente chegar longe e viver perto um do outro
4.9.24
Resta-me a vida
29.8.24
Asas de Amar
Todo o amor esvoaça, primeiro tenta, descobre-se e depois voa
Ai daquele que nunca caiu do alto de um amor, para voltar a esvoaçar na mesma direção
Os amores-perfeitos são aqueles que, mesmo sem tempo, se deixam verter no tempo
Porque é sabido que amar no mundo é perder as asas de amar
E o mundo não sabe nada. Os que guardam o tempo - os amantes sem tempo, sim
28.8.24
Retenção
Pois foste, foste sempre assim:
Frágil, frugral e feiticeira
Sempre nos outros o que (só) achas em ti
O que só se abre em ti
Deste alento e energia, deste a alma, deste o corpo
Deste o teu sangue e sangraste até ao fim
Passou o tempo e voltou a passar
E tu deste, deste, continuas a dar essa pálida energia (que agora reténs)
Esvaziaste o peito, palavra a palavra, até o silêncio apenas te servir
Agora queres apenas salvar, reter alguma coisa, poupar a febre, o fogo, a fala
Algo teu que encha o silêncio, a frugalidade ímpar de estares simples e só, sem chegar nem partir
Porque a peregrinação começou fora e acabou dentro e a solidão é um pátio limpo com magnólias a florir
22.8.24
Duas palavras
Dá-me duas palavras, apenas duas. Com elas rasgo as pedras do nosso altar adormecido
Dá-me outro sentido à viagem por amor, em marcha à proa, passaporte anímico no bolso da imaginação
Duas palavras servem para me dares jubilosa voz
E, assim, só te peço que sejas matéria viva dos meus sonhos - podes vir - reconhecerei o anil da tua luz
21.8.24
Lágrima e sal
mas se me mostrares de novo a beleza do mundo, eu poderei, talvez, voar
uma palavra tua e farei das estrelas o lugar
em barro modelo o teu corpo, nasço de novo a tua carne
tu que me intercedes, tu que me devolves, tu que conténs o tempo e a pele
se quiseres, afogo o coração e solto a tua alma no mar, onde seremos, por fim, lágrima e sal
20.8.24
Improbabilidade
as coisas mais improváveis acontecem em todo o lado, mas raramente a mim
porém, hoje percebi que estou presa e livre num universo sem ti
a mais improvável razão de viver é esta coisa paradoxal de querer e não querer mendigar o que julgamos ter
poderia dar-se o caso provável e imperioso de me deixares partir
pois que me habita esta ideia improvável de amar o universo mais abstrato e distante de ti
Perigeu
Há muita chama que não se vê, por exemplo, o rubor da Lua e o fundo dos teus olhos quando se acendem para mim
Perigosamente perto, queimo óleos e ilusões, deixo arder, deixa ver, deixa ver
19.8.24
Lua Azul
Em quantas noites nuas se escreve o amor e
Em quantas luas se reflete o azul do mar e
Em quanto mar se mira a lua nestas noites de sonhar?
Em quantas mais palavras direi ainda a paixão de viver?
Com quantas rimas e espinhos te espalharei mais rosas pelo caminho?
A urgência lenta de dizer desta agonia do tempo
E na tua ausência perto, quanto mais brilhará na sombra, a lua azul de sempre?
Recentemente...
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