26.6.25

Saudar o dia

Há uma ave que não se cala, mesmo aqui ao lado. E canta com o propósito único de saudar o dia.

Quero que se cale. 

Que o meu choro seja audível pelas raízes fundas e pelos campos ao redor.

Quando a dor é real, não há poesia bastante para calar o canto de uma ave. Muito menos de uma mulher.

22.6.25

Oração em tempo de guerra

A dor de todas as guerras

A razão de cada povo, a guerra santa que foi, a guerra cega que é

A guerra ázima de ambição 

A guerra oleosa do medo

A odiosa guerra da vingança

A prepotência nas vozes que se ouvem, inferno a céu aberto

Fechá-lo urge

Os lobos, em segredo, nas montanhas, rugem

Cega, explosiva, a guerra lá longe, arde-me dentro

Levai, Senhor os homens de armas, lavai, Senhor, o clima dos seus olhos

As feridas na carne dos teus filhos, Senhor, e os teus filhos são todos

Levanta alto a tua mão e volta atrás ao paraíso

Antes do homem querer tanto saber tudo, querer tanto ter tudo e pensar que é tudo


21.6.25

Matéria


Esta noite, poderias prender as minhas mãos nas tuas para lembrarmos tudo que se derramou de nós, ao enchermos o tempo de inútil semântica 

Porque, ouve, eu não sou esse ser etéreo que sai da campa

Nem este chão rasa as nuvens de onde me vês, de onde vens

Por isso, talvez, digo eu, esta noite poderias ter forma e enformares o silêncio com essa planura leve da tua voz

Já que eu sou etérea como um voo de mosca que se alimenta da solidão 

Quando o meu corpo é ainda o corpo do amor e a pele informa a idade com que me deito

Sou também matéria atenta dos vermes, mas antes ainda queria olhar o mar sem versos nem vidros

Ver o sol sem rimas ardentes, para vermos juntos o verdadeiro reflexo da dor e depois talvez um "para sempre"

E então, diz-me, com esta rosa de vida que te dou, arrancada aos cardos mais secos do deserto, a morte, como a sentes?

18.6.25

Reboot

É melhor deixarmos de olhar para trás. Já vai longa a despedida e o poema já perdeu a vela, a luz e a vida

Se te encontrasse de novo, eu sei o que faria. Um reboot total no tempo, uma pele híbrida, um código de amor intenso

Uma inteligência dos sentidos que fosse do mais puro artifício e nos desse a loucura dos sonhos vivos, a peleja dos mais doces vícios

14.6.25

A clara névoa das fontes

Sempre que vejo a clara névoa das noites, absorvo essa transparência como numerosa fonte

Através de mim, passam todos os mistérios do silêncio urbano, menores que as estrelas, mas igualmente longe

Sinto-me cheia de estranhas pausas no discurso. Gostava de ser eu e todos. Ser múltipla e una. E saber onde o caminho me deixou sozinha

Paixão camoniana

Meu amor, cai a neve, cai o tempo, vive a luz azul da floresta.

Tudo cai, quando algo maior que nós se levanta.

A suavidade de um gesto lindo e uma paixão camoniana fica, permanece, resulta. E é tanta!

A maior suavidade que me dá a vida é esta luz que ora se apresenta.

Porque te busco agora e sempre e mais e mais me encantas?

13.6.25

Travessia

Sim, foi uma longa travessia. O deserto encerra aqui a solidão. Quem, onde?

Ninguém. Aves voam sem mim que nunca voei com companhia.

Não é volta. É revolta. Devolução.

Já nada importa. Nunca sequer provei da vida o melhor mel. Sabor a nada em fim da festa.

Porque hoje, nem comigo consigo contentar-me e a única voz que tenho é esta.

Brilho

Nos teus olhos o brilho que nunca vi nos meus. Imagino que foi tudo um sonho longo que só sonhei eu 

E lanço-te ao rio numa folha forte na jovem corrente da vida

E, assim, deposito flores na tua sombra, doravante despedida ao vento

E fico firme em meu saber: no amor, o brilho acende só quanto se sente

3.6.25

Levitação

Tu levitas leve e elevas com leveza a nuvem que o vento leva

Tu és um contemplativo momento e sabes que a contemplação cria o desejo

E eu nem sequer consigo ver que levitas leve 

Nem que elevas com leveza a nuvem

Tão pouco sei que o vento a leva

Provavelmente, não vejo a nuvem

Nem o teu contemplativo momento

Mas penso em ti por dentro e sei que só eu sei como levitas leve na minha nuvem de pueris sentimentos


31.5.25

Exangue

Perdemos quase tudo nesta vida, sobretudo o xadrez do tempo, a jogada de mestre que nos faria ganhar. Esgotamos sobretudo os sons da voz. Esgotamos a paciência, a vontade de acreditar, esgotamos a água e até esgotamos as memórias.

Mas de todas estas perdas, a pior é a do sangue. Gelam as veias, gela a paixão, gela a vontade de rasgar os panos do tempo, essa transfusão de amor que fazemos do passado para o presente

Custa-me dizer-te que sou um espécime antigo, habituado a sangrar com abundância. Vejo-me exangue a olhar-te daqui, tu que ainda oxidas o (meu) sangue com a beleza do olhar

Mas digo: esgotámos o ar fresco das árvores, a brisa maior do mar. Esgotámos os encontros e o crédito das estrelas, como quem viveu demais nelas até abraçar este mísero chão

Meu amor, diria eu, qualquer rubor que me vejas mostra que a tua imagem me transfere um capital cheio de graça e isento de dor 

Mas o sangue, senhor, ferido que foi o corpo com adagas de solidão, o sangue vegeta, verme lento que busca a terra e nela entra 

26.5.25

Carris da noite

Lá fora, os carris da noite correm em direção ao mesmo fim

Passam desmembrados em sibilinos sons nos socalcos da cidade

Nós desembrulhamos a manta e com ela nos mantemos, meticulosamente sérios, enquanto os ouvimos ir e vir

Os carris da noite agudos e sublimes

Vamos mas ficamos, dentro da pele sustida, como quando o mundo nos espia e ouve

E nós os únicos com vida

Linho fresco


A noite é linho e luz até chegar a madrugada. Apenas estás lá. Não sabes nada.

No leito flutuam flores de seda álgidas. Por onde anda a tua alma?

Nem sequer pensas nem sentes, és a seda e a verdade nos sonhos que te devoram até de madrugada

Viste casas, vistes rios inusitados, viste ruas cruzadas com demónios nas portadas.

Recordas tudo? Não, não sabes nada. Só uma sensação de linho fresco e um peso na almofada

25.5.25

Dantes e agora

Dantes, havia palavras alinhadas e prontas como telhas lusas de um telhado qualquer

Dantes destelhavas-me o coração e eu queria essa luz que então entrava

Dantes e agora, meros deíticos de um peso morto. O que te escrevo ganhou musgo. As tuas palavras deixaram de correr pela caleira, a limpar-me o rosto

Por quantos limos limpes, por quantas vezes me fales, fá-lo com apreço e mimo, porquanto este é o meu novo estado

De era pendente num velho telhado

De era imprudente que sobe para um céu onde não há ramos nem galhos

21.5.25

En garde

Mets-toi en garde, je suis encore vivant, dit l' arbre, presque aveugle, pour jadis distant

Hélàs, la vie est morte, dans mes veines de vert sang

Mais, écoute

Je me prends un peu pour jeune fille de feuilles brillantes

Avec ma fièvre et ma dentelle et mes racines épargneés par le temps

Je suis la belle oubliée au bois et je suis pour toujours dormante

14.5.25

Chegada

Mas se vens, porque não vieste?

E se vieste a que vinhas?

Se vieres, vens bem-vindo, nas tuas misteriosas vestes

E na escala em que puderes, aparece, nada te impede de ver se sou quem nomeaste

Vir nem sempre é chegar e, como sabes, às vezes escurece

Mas vem, pode ser que me  detestes

Circular

Ouve, acende bem o olhar. A história é circular e o caminho igual

A tua história sentido inverso, a montante da minha

É o musgo em que escorrego e escorrega a voz

Amiúde

O final feliz, o golpe de misericórdia na orla da cruz

Não é como pensas, não, o tempo esvai-se e não se reproduz

E eu não tenho a pele nem o lustre da manhã - esta plena palavra perece 

Porque a história é circular e o caminho também se esquece

4.5.25

Dia da Mãe

Puxa a si a manta que a separa das bátegas de água e do frio. É domingo e o céu castiga-lhe as asas mortas. Não consegue sequer elevar os braços ao céu para pedir clemência. Passam mães e filhos e gente com ramos de flores e presentes. Vão com a pressa de quem tem um encontro marcado com a vida e com a ternura.

Ela começa a contar pelos dedos os filhos que teve. Imagina-os arrastados pelas circunstâncias, talvez tão afortunados como ela.

Foram saindo de casa um a um. Quando o pai morreu, quiseram vender o abrigo familiar. Para criarem os seus filhos, diziam, e a vida é mesmo assim. Ela sabia.

Quando a parte que lhe coube da casa desapareceu, deixou de poder pagar o quarto na casa da Adília.

Nenhum filho se importou e ela também não. Estranhou a primeira noite, chorou na segunda e em todas as outras noites. Se não havia chuva, era uma bênção dos céus.

Quando lhe voltava à memória o nascimento de cada filho, conseguia ser feliz.

Mas, nos últimos tempos, só tinha aquela manta a que sempre chamara sua, memória dos dia de abrigo, memória de algum amor, para obter conforto. Era Dia da Mãe e ela só gostaria de saber que um deles, ou alguém, se recordaria dela nesse dia. 

Ou noutro dia qualquer.

A dor do mundo

Naquele céu há pássaros que a tempestade espalha, como um véu de aço em movimento

Assim os vejo, rajadas de um fogo aflito

Se eu tivesse ar e respirasse talvez pudesse voar nesse céu coberto de dor, alheia à dor do mundo, que é pior

E tu, amor, tu apenas, doce amor, eras a nuvem, com a crina de um cavalo no olhar

Mas nesse céu as horas e os dias são de uma vida que passou, um céu tão antigo, que abri-lo seria como a dor do mundo, que é pior

Assim vejo esse tempo, rajadas de um fogo aflito, um véu de aço muito transparente, éramos puros e estávamos ao alcance da mão

Era um fogo lindo, agora lento, como um barco que se afundou

Se quiseres vir, com a mesma aflição das aves, procura nos encombros a (nossa) minha verdade. 

Mas vem. Para seres a nuvem que tem a forma de cavalo intemporal. Talvez me leves para onde os homens ainda saibam amar


3.5.25

Tétis

Veio incorpóreo, o adn só impresso no ar, a vocalização sem voz. Expresso o som, validamente, reinicia as sombras da ilusão

Fero sopro na teia que ateia 

Não serei o gigante, corpo de pedra, rodeado pela ninfa que  arremete

Veio incorpóreo. Assim perece. Paixão assim inerte

Qual a ninfa que pode o corpo de um gigante? ¹ Que gigante encolhe, no corpo de uma ninfa

E como cresce?


¹ Inspiração camoniana

1.5.25

Chuva no telhado

Ouvindo a chuva no telhado, palpando bem a solidão, pergunto-me: se não fosse esta trovoada seca que aí vem, se não sentisse inusitados medos, sentiria esta falta profunda dos teus dedos? A tua mão, se me tocasse, quantas cordas tocaria? Dá que pensar o desvario de regressar uma e outra vez ao teu amor, como se existisse. Este medo primitivo de não haver nada mais além de mim, ninguém mais além de ti.



29.4.25

A raiz

Nada. Não tenho nada. Saltei tantos ribeiros que cheguei de olhos cheios à terra seca

Fui como a água de um lago quente, doce e limpa. Depois derramei-me sem rumo, à espera 

À espera de algo que, afinal, só podia estar na raiz mais funda de mim

Pouco posso dar, perdido que foi o momento certo, o tempo em que dar era a espinha dorsal do meu ser

Agora só quero receber. Seja o que for. Aceito sorrisos e piscadelas de olhos, aceito desafios e corridas para ver quem chega primeiro, aceito os anos e os erros dos outros, aceito maratonas de séries negras e marés inesperadas no olhar

Mas saberei dar? Sim, o olhar sereno de quem se aceita assim, enfim nua como sou. A raiz sólida que prende a terra com sede de a possuir

25.4.25

Charada

Quando meto a marcha à ré, nunca sei se devo olhar para trás se para a frente. A medição das distâncias, muitas vezes, não depende dos olhos, mas da visão que se tem da manobra. Tal e qual como o coração que não distingue as dimensões do tempo, quando no passado vê o futuro, o que é sempre melhor do que ver no futuro apenas o passado.

23.4.25

Sombras de Luz

Esta noite não há vento. Os meus dentes não rangem, o meu corpo  solto no universo tangencial

E os meus pensamentos presos saem por aí, atraídos pela imponderável ideia de ti

Mas, então, encontro-te.

Não há vento, nem gente a ranger os dentes, por causa de um demorado inverno, o preço das coisas ou algo assim. Só nós. 

Respiramos a dor passada mas somos tinta e pintamos ao som da noite as sombras de luz mais belas que já vi

Somos os sultões do swing, os reis do mambo, os loucos do tango, tangente e ininterrupto

Somos a tinta do verso impuro que escrevi. 

Enquanto nos espalhamos ébrios pela música de um silêncio e dançamos mudos, assim. 

Apetece-me viver. Viver como quem está vivo. Viver contigo, vivos como antes de o tempo nos cobrir de esquecimento. Mas não sei dançar na tua cor.

Como é que vivem os vivos quando não há vento e as árvores que somos se soltam das suas raízes?

19.4.25

Árvore oca

Andamos assim na dança, ora eu ora tu saltamos, ora eu ora tu ficamos

Desviados na volta, desavindos na vida, um rodopio de saias e de versos, de sons nítidos de dor, notas finas de uma agulha

Eu e tu somos como a árvore oca que ainda espera a primavera e as novas folhas. Que ao menos um pássaro pouse e a árvore cresce.

Não vês? Eu e tu somos apenas o rumor de uma prece, o pássaro que ainda vem cantar a morte.

15.4.25

A poesia do mundo

A poesia do mundo está no cruzamento de duas estradas, exatamente aí, onde o olhar que vê encontra a natureza.

O horror do mundo está na urbanização de gente pobre bombardeada pelos olhos que nunca viram a poesia do mundo.

Tenho pena de quem não carrega a poesia no olhar: a beleza das coisas feitas, não a entendem

Mas tenho mais pena dos que carregam sozinhos o mal do mundo, longe de toda a criação original

13.4.25

Completiva sombra

Ainda agora sempre soube que és completiva sombra do meu ser

Que vontade de celebrar orgias nos teus olhos, esses lenhos de muita dor

Pergunto o oráculo, com esfinges lisas e longas, ledas emoções 

Douradas mãos condutoras de luz

Quando as senti no meu rosto, assim? Com cidades cruas entre nós, fogo de um lago alagado de pus

Sem que claramente soubesse, eu, serenamente, me fui

Mas, porém e ainda, que vontade de encenar contigo a palavra que seduz

15.3.25

Som /S/

Sabes o sangue? A seda, sudário, sedução e sede

Sabes a semente, sémula, sépia na pele

unção e neve se o solo cede

Sabes o sono, silva, salva, sonho deserto

paixão?

Sempre será assim sagrado segredo, de sibilante silenciosa

intenção

Eu e tu e um sol cenário de separação 

Se souberes o sonho e ler o sulco do semeador, o sítio surge e é apenas 

Um cenário de distante dor

Seda sudário, sede, cedo sabemos o que for e o que não for

14.3.25

Com pena e penas

Há poemas com pena, muita pena, e há poemas com penas

Uns têm apenas a pena com que apenas alguém os escreve

Os outros estão cobertos das penas que dão asas

Eu gosto mais dos que voam, na lijeireza dos sons e seus nomes

Os poemas cheios de pena são vogais arrastadas pelo lodo

Pena tenho eu de quem não faz poemas 

Com as penas garridas

Dos pássaros vivos das nossas vidas

8.3.25

Ábregos

Os ventos viajam por dentro de nós, são o ruído do universo nas pálidas vidraças que somos

Longe, as vagas altas fortalezas caem vorazes nos penedos com assassinos ímpetos

Resta-nos a harmonia, no reverso do tempo. Ouvimos a chuva e sabemos cadenciar os ossos, resumir o medo

Lentamente, os ábregos  cedem e são só rios de silêncio o que ouvimos

As tempestades servem-nos a paz numa rajada de silêncio

Sempre foi assim no coração dos homens, essa sabedoria, esse abrigo, uma volta  completa no rumo dos sonhos, um lugar onde já não somos o que fomos

15.2.25

Fabricante de Sonhos


Num sopro de luz, tu voltas, fabricante de sonhos, para me temperares um pouco a pele, um pouco a vida

Se me riscas os sentidos com a centelha que acarinhas, talvez te cruze nas palavras, outras vez desprevenida

Como se todas fossem minhas

14.2.25

Epitáfio recomendado

Comecei a desaparecer suavemente, com a mesma anónima entrada que fiz no mundo

Vi com estes olhos a ruína do mundo, o mover de lodos e areias e fechei a porta a todos

Fui com sinceridade falsa e falsa fui comigo, ao mentir o que digo e mesmo o que não digo


Esperei demais por quem não vinha e quem veio não me encontrou

Foi pena. Há vidas que se perdem num horizonte de saída

Para a longínqua névoa nunca cumprida

2.10.24

Ângulos

Escuta

Esta noite é mais aguda.

Alguns cães ainda ladram à passagem da nossa sombra.

Eu estou sentada no eixo duma escuridão sem nome. Tu recitas versos de luz e eu acendo os olhos cansados.

A noite é aguda, como sabes. Há ângulos que desconhecemos.

Por exemplo, esta pode ser uma noite de cometas e prodígios, estrelas cadentes risonhas com um laço azul na Lua.

Ou pode ser apenas um ângulo equilátero em que todos os lados estão previsivelmente certos e tu estás longe e eu estou perto ou o inverso, mas estamos os dois igualmente distantes. 

E sós.

Deixo-te um nó na garganta para desatares, se quiseres, deixo-te pontas para atares a tua vida à vida, o ângulo mais congruente da existência humana.

Deixo-te o fino sopro da minha voz.


15.9.24

Lua amada

Eis a madrugada, esplendorosa e bela

Eis a noite dos sonhos que nos caminham dentro

Eis, enfim, o corpo amado, suave como sabão neutro, o toque que nos subtrai a vontade

Anda comigo ver a Lua amada, a sua palpitante veia na curtíssima madrugada,

Ouve agora esta verdade, eis aqui o meu corpo onde confluem mar e rio, por tua vontade, amor, pela tua palavra, eu vivo

Viver perto do outro

Quando ganhamos idade, aí umas seis dezenas de anos, temos a mão cheia de sentimentos doces e pacatos

Como a fruta fora de tempo, o sumo é feito da luz que nos crestou

Já não vivemos o amor, aquele que nos dilacera o coração, mas começamos a pensar que amar é exatamente chegar longe e viver perto um do outro

4.9.24

Resta-me a vida

A vida é tudo que tenho e por isso ainda respiro, ainda vivo, ainda nasço de manhã com as aves, no repentino golpe do vento, na álacre lembrança do teu rosto

Ainda vivo por mim, por ti, por todas as mulheres de que descendo, por todos os filhos que tive e pelos seus filhos e por todos os rumores do silêncio vivo

A vida, entendes, é por ela que me decido, corto à direita e à esquerda, perco perícia no ofício, pois já me esgotei no que dei ao mundo

A foz, assim, se avizinha. Não me peçam que viva mais do que me dá a vida. O amor nos teus olhos, a sombra das oliveiras, tão pacíficas, e ficar assim a beber cada segundo, sem pressa de me vencer e não vencida

29.8.24

Asas de Amar

Todo o amor esvoaça, primeiro tenta, descobre-se e depois voa

Ai daquele que nunca caiu do alto de um amor, para voltar a esvoaçar na mesma direção

Os amores-perfeitos são aqueles que, mesmo sem tempo, se deixam verter no tempo

Porque é sabido que amar no mundo é perder as asas de amar

E o mundo não sabe nada. Os que guardam o tempo - os amantes sem tempo, sim

28.8.24

Retenção


Pois foste, foste sempre assim:

Frágil, frugral e feiticeira

Sempre nos outros o que (só) achas em ti

O que só se abre em ti

Deste alento e energia, deste a alma, deste o corpo

Deste o teu sangue e sangraste até ao fim

Passou o tempo e voltou a passar

E tu deste, deste, continuas a dar essa pálida energia (que agora reténs)

Esvaziaste o peito, palavra a palavra, até o silêncio apenas te servir

Agora queres apenas salvar, reter alguma coisa, poupar a febre, o fogo, a fala

Algo teu que encha o silêncio, a frugalidade ímpar de estares simples e só, sem chegar nem partir

Porque a peregrinação começou fora e acabou dentro e a solidão é um pátio limpo com magnólias a florir

22.8.24

Duas palavras


Dá-me duas palavras, apenas duas. Com elas rasgo as pedras do nosso altar adormecido

Dá-me outro sentido à viagem por amor, em marcha à proa, passaporte anímico no bolso da imaginação

Duas palavras servem para me dares jubilosa voz

E, assim, só te peço que sejas matéria viva dos meus sonhos - podes vir - reconhecerei o anil da tua luz


21.8.24

Lágrima e sal

mas se me mostrares de novo a beleza do mundo, eu poderei, talvez, voar

uma palavra tua e farei das estrelas o lugar

em barro modelo o teu corpo, nasço de novo a tua carne

tu que me intercedes, tu que me devolves, tu que conténs o tempo e a pele

se quiseres, afogo o coração e solto a tua alma no mar, onde seremos, por fim, lágrima e sal

20.8.24

Improbabilidade

as coisas mais improváveis acontecem em todo o lado, mas raramente a mim

porém, hoje percebi que estou presa e livre num universo sem ti

a mais improvável razão de viver é esta coisa paradoxal de querer e não querer mendigar o que julgamos ter

poderia dar-se o caso provável e imperioso de me deixares partir

pois que me habita esta ideia improvável de amar o universo mais abstrato e distante de ti


Perigeu

Há muita chama que não se vê, por exemplo, o rubor da Lua e o fundo dos teus olhos quando se acendem para mim

Perigosamente perto, queimo óleos e ilusões, deixo arder, deixa ver, deixa ver

19.8.24

Lua Azul

Em quantas noites nuas se escreve o amor e

Em quantas luas se reflete o azul do mar e

Em quanto mar se mira a lua nestas noites de sonhar?

Em quantas mais palavras direi ainda a paixão de viver?

Com quantas rimas e espinhos te espalharei mais rosas pelo caminho?

A urgência lenta de dizer desta agonia do tempo

E na tua ausência perto, quanto mais brilhará na sombra, a lua azul de sempre?


12.8.24

Em todos os sentidos

Quando achares a beleza, pára o teu coração e não faças mais nada. Deixa-te morrer por momentos enquanto a olhas, enquanto a ouves, a bebes ou a tocas.

Eu confesso que sou caçadora de momentos. É como sentir no peito uma caixinha de música ou como sair de si para ser parte da beleza.

E, sabes, daria o meu olho miope para encontrar a beleza que só tu reúnes, em todos os sentidos.

Meu amor, tu nos meus sentidos... seria a maior beleza pelo universo consentida.

11.8.24

Namoro

Dois dedos de conversa, ele casualmente passa, como os namorados de antes, olha e confirma

Ela pura e casta, roliça e franca não se recusa

Ele gajeiro e forte, com fogo nos olhos, mira nos seios o corpo de enfusa

Na lua um ramalhete seco e algum silêncio de malha, bordados ainda a pairar nos dedos

Entre duas gargalhadas, carícias que tolhem o corpo, trepadeiras finas os dedos que passam

E como os seus olhos chamam a chama da tarde

E como ela se faz inocente, mas prega a fundo os olhos nele

Lembras, numa outra existência?

O namoro à antiga, eu e tu, à sombra das tílias, um leve roçar do braço, a saia a esvoaçar na tarde que finda

E a fina filigrama de uma carícia que arrepia

Por fim, um saboroso beijo que sela a promessa e termina o dia

8.8.24

O ato

Se fosse o peso era pesado, se fosse a pressa era só prazo, se fosse leve era leveza, se fosse  fundo era pausado

Se fosse oculto era pulsão, se conversado era sentido, se combinado era sonhado, se adiado era pena, se recusado era pecado

7.8.24

Alturas

Alcançar a árvore mais alta, com o mais alto voo de águia

Ficar nela sem jamais descer aos baixios podres da terra

Guardar nas penas outras penas que um dia serão leves

Como o cair da ave sobre a neve e o seu eterno sono breve

3.8.24

Guardar-te na minha vida

"Põe-me na Líbia ardente ou na Cíntia fria" ¹

Onde nenhuma criatura humana perturbe a paz de te guardar na minha vida

Onde uma onda fresca me invada de ti imerecida


¹ Camões, Lusíadas 

2.8.24

Senti

Sem ti, como repreendo o mundo e apanho o passal para a vida? 

Sei que sem ti sou uma mulher perdida, daquelas que, em farrapos, procuram os seus dias de rainha.

Onde me sento a conjugar a vida? Sem ti, nada me sabe a flores e mel, sem ti, perdi o sal e o sol. Senti.

Sou a queda e não sei cair. Devolvo-me à dor de imaginar quando foi que te perdi.

Ou como foi que me iludi, menina e moça que não sou  com a morte a rir-se de mim.

23.7.24

História Antiga

Varas aguçam a noite, plantadas no ponto alto da sombra, são como soldados ocultos nas fragas das ribeiras, ondeiam, espreitam, vergam os bambus para a lua cheia

É um cenário de murmúreas lendas, diz-se do mouro e da bela branca prisioneira

Cinzentos os cabelos e os olhos vermelhos, ainda tentam passar para o outro lado, a vau, o amor que não puderam ter logrado

Ficaram assim pelo caminho, mortos em vida e sem vida na morte

Mas agarraram a fuga, feriram a maré fria, caíram com as mãos e os corpos de mártires, unidos pelas águas e pelos sentidos

Ainda hoje os buscam, a bela branca e o negro mouro, nas faldas profundas da Ribeira do Fim do Mundo

Em tempos idos era lindo fugir com o amor e vencer o medo, lavrando com o amor o feio mundo

Hoje o amor não move como movia a aventurosa ébria melodia 

Mal de amor

Era uma igreja fresca como só os lugares de pedras milenares são 

Frescas, mudas e com tempo, as pedras partem do chão 

Continuam nos arcos de volta inteira, nas abóbodas completas, atentas como orelhas

E ouviram-me por certo chorar por dentro e pedir silêncio a todas as seráficas figuras de santos, anjos e curandeiras

O meu mal de amor não tem lugar nem fronteiras

Nasceu-me cedo e ficará a vida inteira

Recentemente...

Saudar o dia

Há uma ave que não se cala, mesmo aqui ao lado. E canta com o propósito único de saudar o dia. Quero que se cale.  Que o meu choro seja audí...

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